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Espere Resistência
CrimethInc


Muito antes de concordar com os bárbaros, eu já tinha aprendido tudo que sei sobre atividade clandestina. Contrabandeando paixões secretas sob o radar dos meus pais e depois sob os narizes das minhas amantes me preparou para pesquisar alvos sem deixar um rastro e passar fitas de vídeo por revistas da polícia. Se eu aprendi algo na minha adolescência, foi que o preço dos momentos mais maravilhosos era ter que deixar de ser honesto com aqueles no poder.


Isso foi de grande utilidade durante o ensino médio quando eu saía pela janela para me encontrar com Linda e depois mais tarde quando eu tive que pensar rápido perante o júri, mas isso não me deu a habilidade de ser honesto a respeito das minhas necessidades quando as pessoas "no poder" eram minhas próprias companheiras. Meu casamento acabou em desastre depois que me apaixonei por Chloe; quando aquele poço secou, Chloe e eu traímos um ao outro e seguimos em diante para repetir o mesmo ciclo com outros.


Milhões de pessoas a cada geração chegaram sozinhos à conclusão de fazer as pazes com a sua tendência a serem infiéis, pois ninguém ousa falar abertamente sobre este assunto. Não existem autobiografias honestas, que não tenham sido obscurecidas por bravatas ou por vergonha, nenhum conselho familiar útil é passado sobre este assunto, as páginas amarelas não mencionam nenhum programa de redução de danos para traidores seriais. Mesmo que hajam provavelmente mais adúlteros na América do Norte que vegetarianos! As pessoas preferem admitir que são criminosos em guerra com Deus e com a Nação do que encarar as conseqüências e implicações dos seus casos amorosos secretos.


Levei décadas para assumir para mim mesmo que era eu no poder fazendo mal àqueles que eu amava e não o contrário. Eu via as expectativas das minhas amantes como amarras, mas muitas vezes eu participava na criação dessas expectativas. Para ser justo, eu não conseguia imaginar outra forma de agir. Eu só tive contato com o poliamor durante a ocupação na universidade; àquela altura eu já era velho o suficiente para sentir que eu nunca teria outro relacionamento, e certamente não com esses jovens loucos. Quando se trata de romance, depois que atinge uma certa idade você se torna invisível.


Eu aceitava o isolamento da meia-idade com uma mistura de melancolia e alívio. Eu terminei meu último relacionamento mais ou menos na época em que cancelei aquela viagem de negócios, juntando-me às legiões de homens solteiros marinando na amargura enquanto o mundo continua sem eles. Se era assim para os homens de meia-idade, eu não posso nem imaginar como deve ser para as mulheres da minha geração ― mas eu estava separado delas também, todos éramos invisíveis uns aos outros. Solitário como eu me sentia, pelo menos eu não tinha que me preocupar em partir mais corações; eu me sentia como produtos danificados, o portador de uma doença que só causa males àqueles que dele se aproximam.


O que eu mais sentia falta, no final das contas, não era o romance ou o sexo, mas sim a intimidade em compartilhar um mundo privado com alguém. Isso pode explicar porque eu respondi tão inusitadamente ao carinho de Kate, porque eu me esforcei tanto me envolver em um movimento que normalmente não tem espaço para pessoas da minha classe ou carreira. Eu adorava o companheirismo de comer juntos, planejar juntos, andar pela rua juntos, aos meus olhos, essa unidade era o aspecto verdadeiramente revolucionário da coisa, muito além de quebrar vitrines. Mesmo pessoas como meus antigos colegas de trabalho devem ansiar por este tipo de companheirismo. Durante seus anos de universidade, as fraternidades e repúblicas foram o mais perto que já chegaram disto e eles sentirão nostalgia dessa ridícula simulação de comunidade pelo resto das suas vidas.


Entretanto, com o cessamento completo das atividades locais eu passei muito tempo sozinho. Agora que pedi demissão do meu emprego no jornal, eu raramente via alguém, só em reuniões ocasionais. Eu estava trabalhando em um livro, depois de muito tempo, mas era um guia para jornalistas radicais, e não a crônica de uma testemunha da insurreição e da depravação que eu inicialmente imaginei que me catapultaria para a fama corporativa; além disso, eu me ocupei fazendo trabalho na mídia independente e relendo Tolstoi e Melville. Eu tinha algum dinheiro economizado, suficiente para adiar uma busca por emprego e eu o utilizasse comedidamente. Finalmente, me veio a idéia de que eu poderia me envolver em alguns dos projetos comunitários que eu sempre estive muito ocupado para investigar. Foi assim que comecei a ver Marshall novamente.


O tempo todo, mesmo durante os tempos mais difíceis, Marshall manteve funcionando o seu programa de distribuição de alimentos com quaisquer voluntários disponíveis no momento. Sindicalistas perderam o contato com os trabalhadores que estavam envolvidos na greve do campus, como a maioria deles trocou de emprego no anos seguintes; mas Marshall ainda visitava os seus bairros toda semana com o porta-malas cheio de pães e vegetais. Antecipando outra gélida rejeição, o abordei e ofereci meus serviços.


Me surpreendi com a sua resposta. Ele parecia se esforçar muito para fazer eu me sentir bem-vindo e valorizado; dentro de algumas semanas eu era um participante regular, indo de carro a todas as lojas e lavando os produtos que coletávamos e às vezes acompanhando Marshall em seu roteiro. Ele me parecia mais triste agora, sua fronte mais contraída do que antes, mas também mais tolerante e maduro. É claro, eu não o conhecia bem antes.


Quando me juntei a ele, ele já tinha acompanhado várias gerações de funcionários nas lojas. Toda vez que um pedia demissão ou era pego, nós tínhamos que voltar a vasculhar as lixeiras até que encontrássemos outra conexão lá dentro; de vez em quando uma loja trocava a sua caçamba de lixo por um compactador de lixo e tínhamos que reformular nossa rota. Mesmos nossos carregamentos mais minguados, eram o suficiente para alimentar dúzias de lares. Eu mal podia acreditar que eles faziam isso há anos sem que as autoridades os pegassem; era ainda mais difícil de acreditar que, durante anos antes disso, a comida apodrecia enquanto famílias gastavam seus últimos reais comprando macarrão instantânea temperado com um pó insosso e valor nutritivo próximo de zero.


Entre as portas dos fundos, lixeiras, cozinhas e condomínios de apartamento, começamos a conversar. Primeiro nossas trocas eram superficiais, meticulosamente civilizadas; levamos um bom tempo para nos abrirmos um com o outro. Depois que o fizemos, havia muito sobre o que falar: o que nossos amigos em comum da ocupação estavam fazendo, por que o movimento havia morrido, quanto da tecnologia e produção atuais deveriam permanecer em um mundo pós-revolucionário. No fim, Marshall até mesmo pediu desculpas pela sua arrogância de antes.


Algo que me surpreendeu foi quão pouco eu via Kate. Parecia que ela e Marshall ainda estavam envolvidos, entre indas e vindas, mas ele parecia estar a evitando da mesma forma que eu comecei a evitar minha esposa quando eu não queria ser rotulado pelo nosso relacionamento mas não estava pronto para terminá-lo. Eu ainda tinha muita consideração por Kate; inicialmente eu esperava que convivendo mais com Marshall eu acabaria interagindo mais com ela também. Uma noite eu tive uma idéia do que estava acontecendo quando Marshall pediu que eu o deixasse em uma casa coletiva onde Samia estava ficando; ela o cumprimentou com um abraço que dificilmente era platônico e ele se virou, claramente pouco à vontade em demonstrar afeto na minha frente. Justamente Samia! Eu fiquei surpreso que eles até mesmo se falavam depois da última vez que os vi juntos.


Eu não podia estar em uma posição pior para trazer isto à tona, mas eu senti que era minha responsabilidade. "Isso não me diz respeito, e eu não tenho direito de me intrometer", comecei na próxima vez que ficamos juntos sozinhos no carro, "mas a Kate sabe sobre você e Samia? Você tem se encontrado com ela, né?"


Ele não respondeu. Eu olhei para ele; seus olhos estavam fixos no porta-luvas. Minha própria história de infidelidade estava se repetindo dentro da minha cabeça. O mundo tinha nos traído a tal ponto que só conseguíamos trair uns aos outros?


"Marshall, você precisa falar com ela."

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