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A miséria e o desemprego se espraiam pelo mundo afora e se difunde cada vez mais a sensação de que vivemos numa época de crise contínua e aguda. Mas não sempre se tem em conta um fato tão fundamental quão elementar: não são as capacidades produtivas que estão em crise. Pelo contrário, se produz muito mais do que se usa, e se joga, literalmente, no mar os “excedentes” alimentares. O que efetivamente está em crise é o mecanismo de mediação, representado pelo dinheiro: no capitalismo, se produz somente aquilo que pode ser transformado em dinheiro, o que é vendido no mercado, caso contrário se abandona a produção, por mais útil que ela possa ser; e somente quem consegue transformar a sua força-trabalho em dinheiro pode aceder aos produtos disponíveis, caso contrário permanecem inutilizados. Não se quer, então, grandes projetos utópicos para imaginar outras formas de consumo e de produção: o importante seria uma produção voltada para a satisfação das necessidades sociais, e não para satisfazer a cega necessidade do sistema baseado sobre o valor, sobre a mercadoria e sobre o dinheiro de crescer continuamente. Precisaríamos de uma produção que se preocupe dos conteúdos ao invés da auto-reprodução tautológica de uma forma vazia: o valor como representação fictícia do trabalho passado. Mas é evidente que seria inútil dar conselhos aos governos de como chegar a isso. Na sociedade da mercadoria, o Estado não pode ter outra função que a de garantir o mínimo de coesão sem a qual esta sociedade, baseada sobre a concorrência, se dissolveria imediatamente numa guerra de todos contra todos. Qualquer governo, independentemente das suas intenções, deve necessariamente buscar garantir a valorização do capital e tornar-se escravo dos “mercados”. A estrada da emancipação social não pode passar pela tomada do poder ou a conquista do Estado. Este, de qualquer modo, se reduziu quase que inteiramente a uma carcaça vazia. A emancipação social deve passar por uma longa estrada, feita de múltiplas experiências de autoorganização e de reapropriação direta dos recursos materiais e imateriais, lá onde vale a pena. Não se trata mais de pedir “postos de trabalho”, mas de reivindicar o direito de todos a uma vida boa, já que os pressupostos para isso estão dados: o direito de não morrer de sede em meio à água. A recusa do trabalho não significa, certamente, uma recusa da atividade. Absolutamente não se trata disso, mas o contrário: muitas vezes é a própria sociedade baseada sobre o trabalho que impede as atividades sensatas, por exemplo, quando o mercado mundial constringe milhões de agricultores no mundo a abandonar os seus campos, porque não são mais “rentáveis”. A recusa do trabalho não significa, igualmente, a expectativa de um duvidoso paraíso tecnológico, onde ficaremos olhando somente as máquinas trabalhando no nosso lugar. Significa, sim, não aceitar mais que a própria existência dependa da venda da própria força-trabalho, uma venda que prescinde de toda e qualquer consideração do conteúdo do trabalho e que todos devem tentar mesmo quando esta força-trabalho não é mais requerida pelos processos produtivos. Na verdade, é a própria sociedade do trabalho, reduzindo cada dia o trabalho necessário e declarando para a maior parte dos seus súditos que ela não mais necessita dos seus serviços, que trabalha para a abolição da sociedade do trabalho. Uma saída emancipatória desta situação é possível, mas não está, absolutamente, garantida. Certamente, os sindicatos e os partidos tradicionais de esquerda não compreenderam esta situação. Isso quando chegam, em muitos casos, a se vender ao “realismo” neoliberal, sonhando, no melhor dos casos, com um impossível retorno de um idealizado “welfare state” (estado de bem-estar social) de trinta anos atrás. Certamente, no Brasil, essas nostalgias são mais absurdas que em outras partes do mundo. Pois aqui o capitalismo nunca funcionou na sua forma “clássica”, como integração da população inteira no ciclo de uma produção maciça e de um maciço consumo de mercadorias. Toda teoria do “desenvolvimento”, que quer introduzir com trinta anos de atraso aquilo que não funcionou nem nos países mais “ricos”, está condenado à falência. Mas, talvez, nisso reside também a chance para o Brasil: ele não deve, necessariamente, passar por todo o ciclo capitalístico[1]. Em muitas regiões do País, existem ainda tradições pré-capitalistas que nos seus aspectos positivos – por exemplo a confiança no trabalho ou no espírito de comunidade – poderiam desenvolver um papel emancipatório. A idéia bizarra que se vive somente para trabalhar e acumular dinheiro parece estar menos enraizada nas cabeças das pessoas no Brasil do que nos países mais “avançados”. Até que as mudanças sociais não serão imediatamente mundiais, a grandeza do Brasil e as suas riquezas naturais podem garantir que as tentativas de construir uma sociedade diferente não sejam abafadas pela eventual hostilidade do mundo circunstante. E se se acredita que a campanha e a agricultura devem desenvolver um papel de primeira grandeza na construção de uma sociedade emancipada, então o Brasil será uma terra eleita para uma tal construção.

[1] Esta idéia o autor defende de maneira mais ampliada no relato de uma viagem pelo Brasil e que foi publicado na Carta Capital, 26-4-2000. Esse relato pode ser consultado também no boletim Cepat Informa no. 61, p. 21-29, de 2000.


Publicado em IHU-Online, ano 4, no. 98, 26 de abril de 2004.



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