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A Sociedade do Espetáculo
Guy Debord


«Nada de nosso temos senão o tempo, de que gozam justamente aqueles que não têm paradeiro.»
(Baltasar Gracián - O Oráculo Manual)


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O tempo da produção, o tempo-mercadoria, é uma acumulação infinita de espaços equivalentes. É a abstração do tempo irreversível, de que todos os segmentos devem provar ao cronômetro a sua única igualdade quantitativa. Este tempo é, em toda a sua realidade efetiva, o que ele é no seu caráter permutável. É nesta dominação social do tempo-mercadoria que "o tempo é tudo, o homem não é nada: é quando muito a carcaça do tempo" (Miséria da Filosofia). É o tempo desvalorizado, a inversão completa do tempo como "campo de desenvolvimento humano".

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O tempo geral do não desenvolvimento humano existe também sob o aspecto complementar de um tempo consumível que regressa à vida quotidiana da sociedade, a partir desta produção determinada, como um tempo, pseudocíclico.

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O tempo pseudocíclico não é outra coisa senão o disfarce consumível do tempo-mercadoria da produção. Ele contém as características essenciais de unidades homogêneas permutáveis e da supressão da dimensão qualitativa. Mas ao ser o subproduto deste tempo destinado ao atraso da vida quotidiana concreta -- e à manutenção deste atraso --, ele deve estar carregado de pseudovalorizações e aparecer numa sucessão de momentos falsamente individualizados.

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O tempo pseudocíclico é o do consumo da sobrevivência econômica moderna, a sobrevivência aumentada, em que o vivido quotidiano continua privado de decisão e submetido, não à ordem natural, mas à pseudonatureza desenvolvida no trabalho alienado; e, portanto, este tempo reencontra muito naturalmente o velho ritmo cíclico que regulava a sobrevivência das sociedades pré-industriais. O tempo pseudocíclico apoia-se ao mesmo tempo nos traços naturais do tempo cíclico, e dele compõe novas combinações homólogas: o dia e a noite, o trabalho e o repouso semanais, o retomo dos períodos de férias.

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O tempo pseudocíclico é um tempo que foi transformado pela indústria. O tempo que tem a sua base na produção de mercadorias é ele próprio uma mercadoria consumível que reúne tudo o que anteriormente se departamentalizava -- quando da fase da dissolução da velha sociedade unitária -- em vida privada, vida econômica, vida política. Todo o tempo consumível da sociedade moderna acaba sendo tratado como matéria-prima de novos produtos diversificados, que se impõem no mercado como empregos do tempo socialmente organizados. "Um produto que já existe sob uma forma que o torna apropriado ao consumo pode, no entanto, tornar-se por sua vez matéria-prima de um outro produto" (O Capital).

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Em seu setor mais avançado, a concentração capitalista orienta-se para a venda de blocos de tempo "totalmente equipados", cada um deles constituindo uma única mercadoria unificada que integrou um certo número de mercadorias diversas. É assim que pode aparecer, na economia em expansão dos "serviços" e das recriações, a modalidade do pagamento calculado "tudo incluído", para o habitat espetacular, as pseudo-deslocações coletivas de férias, o abonamento ao consumo cultural e a venda da própria sociabilidade em "conversas apaixonantes" e "encontros de personalidades". Esta espécie de mercadoria espetacular, que evidentemente não pode ter lugar senão em função da penúria aumentada das realidades correspondentes, figura, evidentemente, também entre os artigos-pilotos da modernização das vendas ao poderem ser pagas a crédito.

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O tempo pseudocíclico consumível é o tempo espetacular, em sentido restrito, tempo de consumo de imagens, em sentido amplo, imagem do consumo do tempo. O tempo de consumo das imagens, médium de todas as mercadorias, é o campo onde atuam em toda sua plenitude os instrumentos do espetáculo e a finalidade que estes apresentam globalmente, como lugar e como figura central de todos os consumos particulares: sabe-se que os ganhos de tempo constantemente procurados pela sociedade moderna -- quer se trate da velocidade dos transportes ou da utilização de sopas em pacotes -- se traduzem positivamente para a população dos Estados Unidos neste fato: de que só a contemplação da televisão a ocupa em média três a seis horas por dia. A imagem social do consumo do tempo, por seu lado, é exclusivamente dominada pelos momentos de ócio e de férias, momentos representados à distancia e desejáveis, por postulado, como toda a mercadoria espetacular. Esta mercadoria é aqui explicitamente dada como o momento da vida real de que se trata esperar o regresso cíclico. Mas mesmo nestes momentos destinados à vida, é ainda o espetáculo que se dá a ver e a reproduzir, atingindo um grau mais intenso. O que foi representado como vida real, revela-se simplesmente como a vida mais realmente espetacular.

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Esta época, que se mostra a si própria o seu tempo como sendo essencialmente um regresso precipitado de múltiplas festividades, é realmente uma época sem festa. O que era, no tempo cíclico, o momento da participação de uma comunidade no dispêndio luxuoso da vida, é impossível para a sociedade sem comunidade e sem luxo. Suas pseudofestas vulgarizadas, paródias do diálogo e do dom, movimentando um excedente de dispêndio econômico, não trazem outra coisa senão a decepção sempre compensada pela promessa de uma nova decepção. O tempo da sobrevivência moderna, no espetáculo, gaba-se tanto mais alto quanto mais o seu valor de uso se reduz. A realidade do tempo foi substituída pela publicidade do tempo.

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O consumo do tempo cíclico das sociedades antigas estava de acordo com o trabalho real dessas sociedades, mas o consumo pseudocíclico da economia desenvolvida encontra-se em contradição com o tempo irreversível abstrato da sua produção. O tempo cíclico era o tempo da ilusão imóvel, realmente vivido, ao passo que o tempo espetacular é o tempo da realidade que se transforma, vivido ilusoriamente.

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O que é sempre novo no processo da produção das coisas não se reencontra no consumo, que permanece um regresso ampliado do mesmo. Porque o trabalho morto continua a dominar o trabalho vivo, no tempo espetacular o passado domina o presente.

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Como outro aspecto da deficiência da vida histórica geral, a vida individual não tem ainda história. Os pseudo-acontecimentos que se amontoam na dramatização espetacular não foram vividos pelos que deles são informados e, além disso, perdem-se na inflação da sua substituição precipitada a cada pulsão da maquinaria espetacular. Por outro lado, o que foi realmente vivido está sem relação com o tempo irreversível oficial da sociedade e em oposição direta ao ritmo pseudocíclico do subproduto consumível desse tempo. Este vivido individual da vida quotidiana separada permanece sem linguagem, sem conceito, sem acesso crítico ao seu próprio passado, que não está consignado em nenhum lado. Ele não se comunica. Está incompreendido e esquecido em proveito da falsa memória espetacular do não-memorável.

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O espetáculo, como organização social presente da paralisia da história e da memória, do abandono da história que se erige sobre a base do tempo histórico, é a falsa consciência do tempo.

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Para rebaixar os trabalhadores à condição de produtores e consumidores "livres" do tempo-mercadoria, a condição prévia foi a expropriação violenta do seu tempo. O regresso espetacular do tempo não se tornou possível senão a partir desta primeira despossessão do produtor.

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A parte irredutivelmente biológica que continua presente no trabalho, tanto na dependência do cíclico natural da vigília e do sono como na evidência do tempo irreversível individual do uso de uma vida, não são mais do que acessórios face à produção moderna; e como tais, estes elementos são negligenciados nas proclamações oficiais do movimento da produção e dos trofeus consumíveis, que são a tradução acessível desta incessante vitória. Imobilizada no centro falsificado do movimento do seu mundo, a consciência espectadora não conhece na sua vida outra coisa senão uma passagem para a sua realização e para a sua morte. A publicidade dos seguros de vida insinua que é repreensível morrer sem assegurar a regulação do sistema depois desta perda econômica; o american way of death [1] insiste sobre a sua capacidade de manter neste encontro a maior parte das aparências da vida. Do ponto de vista da frente do bombardeamento publicitário é terminantemente proibido envelhecer. Tratar-se de poupar, em cada qual, um "capital-juventude" que, por ter sido mediocremente empregado, não pode pretender adquirir a realidade durável e cumulativa do capital financeiro. Esta ausência social da morte é idêntica à ausência social da vida.

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O tempo é a alienação necessária, como o mostrava Hegel, o meio pelo qual o sujeito se realiza perdendo-se, tornando-se outro para se tornar a verdade de si mesmo. Mas o seu contrário é justamente a alienação dominante, que é suportada pelo produtor de um presente estranho. Nesta alienação espacial, a sociedade que separa na raiz o sujeito e a atividade que ela Ihe furta, separa-o antes de tudo do seu próprio tempo. A alienação social superável é justamente aquela que interditou e petrificou as possibilidades e os riscos de alienação viva no tempo.

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Sob os modos aparentes que se anulam e se recompõem à superfície fútil do tempo pseudocíclico contemplado, o grande estilo da época está sempre no que é orientado pela necessidade evidente e secreta da revolução.

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A base natural do tempo, o dado sensível do correr do tempo, torna-se humana e social ao existir para o homem. É o estado acanhado da prática humana, o trabalho em diferentes estágios. Que até aqui humanizou e desumanizou também o tempo, como tempo cíclico e tempo separado e irreversível da produção econômica. O projeto revolucionário de uma sociedade sem classes, de uma vida histórica generalizada, é o projeto de uma extensão progressiva da medida social do tempo em proveito de um modelo Iúdico de tempo irreversível dos indivíduos e dos grupos, modelo no qual estão simultaneamente presentes tempos independentes federados. É o programa de uma realização total no meio do tempo, do comunismo que suprime "tudo o que existe independentemente dos indivíduos"

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O mundo já possui o sonho de um tempo que ele deve possuir agora, e a consciência para o viver realmente.


Referências

  1. Em inglês no original (N. T.).
A Sociedade do Espetáculo
Tempo e história O tempo espetacular A ordenação do território
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