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Dias de Guerra, Noites de Amor
CrimethInc

"NÓS" CONTRA "ELES": O eterno mito e paradoxo. (adaptado dos diários de Stella Nera)

1. Identidade e a Economia de Escassez do Ser


Depois que conhecemos Alec, Jackson observou: "Quando eu conheço uma pessoa, eu não gosto se ela imediatamente começa a falar mal de outras pessoas. Eu não quero ouvir quais grupos ela é contra, mas sim o que ela própria está fazendo."


Bem, Jackson, eu acho que de sua própria forma limitada, Alec estava tentando lhe dizer o que ele está fazendo: o que ele está fazendo é simplesmente "sendo contra" as coisas das quais estava falando. Talvez ele não tenha noção de como fazer algo mais positivo do que fazer oposição. E ele certamente não é o único.


Relações humanas competitivas depende e perpetuam um sentimento de empobrecimento no indivíduo, uma economia de escassez da alma: pois no status quo ela é incapaz de fazer o que quer e, ao mesmo tempo, ela deve se sentir este desamparo e pobreza da vida para se dispor a jogar o jogo de poder do perdedor. Para aliviar esse sentimento de empobrecimento, o indivíduo procura ― mais do que posses materiais, que são apenas um meio para este fim ― identidade, o consolo pela falta de liberdade (se "eu não posso", pelo menos "eu sou..."). Identidade, como conceito, funciona com o contraste: alguém "é" preencha-o-espaço-em-branco, ao contrário dos outros, que não são... logo, para a alma desesperada da sociedade moderna, nada é mais precioso que oponentes, pessoas para desprezar, para que ele consiga se afirmar de seu próprio valor: como um consumidor fiel da ideologia marca X, por exemplo. O jovem "ativista", embora inconsciente disso, tem uma boa participação em manter a alienação dos outros, e não é de surpreender que ele aja de forma superior, ameaçadora, etc. para manter a distância entre si e as pessoas "normais".


Para ser eficiente ao agir radicalmente (ao invés de apenas parecer radical!), devemos estar desinteressados em ser radical ou "um ativista", e só desejar fazer coisas radicais acontecerem. Então vamos parar com conflitos estúpidos e lutas internas, pelo amor de deus! Num sistema que é conflito sistematizado como relações sociais, no qual sociedade é uma rede de lutas organizadas como estrutura social, se dar bem é praticamente a definição de ação radical. Até que sejamos capazes de deixar nossas "identidades" para trás, sempre que nos reunirmos será sempre um caso de imagens se encontrando e entrando em conflito ― com os humanos por trás delas incapazes de enxergarem uns aos outros.


2. Lute guerras e busque a paz.


Este sendo o caso, não podemos gastar toda nossa energia tentando derrotar o Estado, a tirania das corporações, etc. ― pois mesmo se obtivermos sucesso, enquanto a maioria das pessoas não forem capazes de trabalhar junto (e portanto inconscientes de seu potencial), só poderemos ser mais um partido de vanguarda/governo. Sob tais condições, a luta com o estado é só mais uma luta entre poderes que funciona como um substituto à liberdade de ação. Nós precisamos lutar simultaneamente e pela força para amar, perdoar e cooperar, e para esta empreitada precisamos estar prontos para nos livrarmos de nossa necessidade de Identidade no sentido tradicional. O que mais precisamos no momento são formas de falar que dêem aos outros vozes próprias (ao contrário à já mencionada economia da escassez, na qual o próprio ato de falar monopoliza a expressão e a nega aos outros), formas de agir capazes de ativar ― estas serão as armas que nenhum poder conseguirá derrotar.


O que precisamos acima de tudo, então, é a autoconfiança para falar com e ouvir os outros, encontrar truques mágicos com os quais velhos conflitos possam ser superados e pessoas como Alec e suas facções rivais descubram maneiras de coexistir e se ajudarem. Pois revolução não tornar os outros iguais em suas ideologias ou relações uns com os outros, mas simplesmente estabelecer relações de benefício mútuo entre indivíduos e grupos diferentes. Eu preferiria pensar como Alec e eu podemos transcender nossas interações previsíveis, ao invés de apenas o analisarmos de uma forma que faça eu parecer mais inteligente ou maduro.


VOCÊ TEM IDÉIAS OU AS IDÉIAS O TÊM?


"Um idealista é um homem que acredita na fraude fabricada por seu próprio intelecto: que uma idéia, ou seja o símbolo de uma realidade momentaneamente percebida, possa possuir a realidade absoluta." ― Sócrates, refutando a intepretação de suas idéias por Platão

"Eu não sou um Marxista." ― Karl "Groucho" Marx

"O mundo nos escapa porque ele pode voltar a ser ele mesmo." ― Lewis Carrol


Introdução do editor: Possivelmente o melhor texto que algum de nós já escreveu sobre este assunto é uma carta que Nádia enviou a um amigo em resposta a um artigo que ele tinha escrito com sua ajuda (o título original dela era "A Luta Política é a Luta Contra a Política", que ele mudou para "Contra a superficialidade da Política")... então aqui está sua carta, reimpressa de sua coleção particular. Lembre-se, tudo em que você acredita lhe aprisiona.


02 de junho Amsterdã (na casa de Chloe, com Phoebe e Heloise)

Caro E---,

Não, você não entendeu nada do que eu estou falando. Na sua pressa de conseguir para si a imagem de "ativista político" (ou, pior, teórico) ― o que quer que isso signifique - você concluiu que tudo tem que ser "política" ― o que quer que isso signifique! Pois quanto mais você expande o significado de uma palavra, mais nebulosa ela se torna, e mais inútil. Uma vez que tudo é política, então "política" de novo não significa nada, e temos que começar do zero.


Então, supondo que "política" não seja apenas uma palavra sem-sentido e generalista... É claro que todo assunto pode ser analisado de uma forma "política", incluindo nossa própria mortalidade - eu não estava tentando negar isso. Isso, de fato, é exatamente o que quero dizer: uma vez que você começa a se pensar como "político", uma vez que você começa a pensar em termos de análise e crítica ― pior ainda pensar de si mesmo como sendo crítico ― você começa a ver tudo nesses aspecto, você tenta encaixar tudo na sua análise. Ser "político" se torna um câncer que se espalha lentamente para toda parte do seu ser, até que você não consiga pensar em nada que não envolva luta de classes, de gêneros, do que quer que seja.


E não há análise ou ideologia (porque é sobre isto que estamos falando aqui, com sua insistência na política da vida e na teoria da política) ampla o suficiente para conter tudo o que a vida é. Uma ideologia, assim como uma imagem, é sempre algo que você deve comprar ― ou seja, você deve dar uma parte de si em troca. Essa parte de si é todos aspectos do mundo, toda experiência deliciosamente complexa, todo detalhe irredutível que não se encaixa na moldura que você construiu com orgulho.


É claro, você pode ver sexo oral, pores-do-sol, canções de amor e comida chinesa deliciosa como assuntos políticos, ou até mesmo os abordá-los de uma forma que é política num sentido muito menos superficial ― mas o fato é que quando você está lá nesses momentos existem coisas que escapam qualquer tipo de compreensão, pra não mencionar expressão, pra não mencionar análise. Viver e sentir são simplesmente complicados demais para serem capturados completamente por qualquer linguagem, ou por qualquer combinação de linguagens. Assim como aquele idiota do Platão, vítima da ideologia (que eu imploro que você não seja) duvida da realidade de tudo que ele não possa simbolizar com linguagem (política ou não), porque ele esqueceu que seus símbolos são apenas generalizações convenientes para substituir os incontáveis momentos únicos que compõem o universo.


Eu posso antecipar a sua resposta: minha crítica da política é ela própria uma avaliação política, uma parte da minha ideologia. E assim é. Eu lhe escrevo tão veementemente sobre isto porque é um problema com o qual estou lutando agora. Eu me vejo transformando tudo em um trato ou crítica política, possuída por (o que minha ideologia descreve como!) uma compulsão capitalista de transformar todos meus sentimentos e experiências em objetos ― isto é, em teorias que eu posso levar comigo aonde eu for. Meus valores passaram a girar ao redor dessas teorias, as quais eu mostro como provas de minha inteligência e importância, da mesma forma que um burguês exibe seu carro como prova de seu valor: minha vida não é mais sobre minhas experiências reais, é sobre "a luta" ― e na verdade eu queria que essa luta fosse para centrar minha vida nas minhas experiências, e não um novo substituto! Eu gostaria de dizer que essa carta é minha barricada final contra as exigências que consomem tudo da política... mas isso foi provavelmente há muito tempo atrás, a última vez que eu consegui pensar em algo sem me ocorrerem todas ramificações políticas. Cuidado com o que você deseja, E---, quando você diz que tudo é política.


Eu acho que parte da necessidade patológica de sistematizar tudo vem de vivermos em cidades. Tudo ao nosso redor foi feito por seres humanos, e tem um significado humano específico atribuído ― então quando você olha ao seu redor, ao invés de ver os objetos que estão à sua volta, você vê uma floresta de símbolos. Quando eu estava nas montanhas, era diferente. Eu caminhava e não via nenhum sinal de "Pare", eu via árvores e flores, coisas que existem além de qualquer quadro de significados e valores humanos. Ficar lá sob um céu estrelado, olhando o horizonte silencioso, o mundo parecia tão imenso e profundo que eu podia apenas ficar à sua frente, muda e tremendo. Nenhuma política jamais conseguirá fornecer uma caixa grande o suficiente para conter esses momentos. Isso para não dizer que não há razão para conceituarmos as coisas, E---, é claro que isso é útil às vezes... mas é um meio, e não o único meio, para um fim muito mais importante. Isso é tudo.


Eu lhe deixo com isso, minha pobre tradução de uma linha da carta de adeus que a amante de Mao Tse-Tung lhe escreveu logo após o sucesso da, assim chamada, Revolução Comunista da China:

"É tristemente previsível que o único modo como você consegue celebrar a libertação que você sente ao deixar o velho sistema para trás é inventar um "sistema de libertação", como se tal coisa pudesse existir ― mas acho que isso é tudo que podemos esperar de quem nunca conheceu nada além de sistemas e sistematização."

Com amor, Nadia.


Olhando a vida passar.

O curioso sobre um espetáculo é como ele imobiliza os espectadores: assim como a imagem, ele faz sua atenção, seus valores e suas vidas girar ao redor de algo que não eles mesmos. Ele os mantém ocupados sem mantê-los ativos, faz eles se sentirem envolvidos sem dar-lhes o controle. Dá para imaginar uma série de exemplos disto: programas de televisão, filmes de ação, revistas de fofoca, esporte profissional, "democracia" representativa, a Igreja Católica.

O espetáculo isola as pessoas que nele prestam atenção. Muitos de nós sabemos mais sobre os personagens fictícios de seriados televisivos do que sobre a vida e os amores de nossos vizinhos ― pois mesmo quando falamos com eles, é sobre programas de TV, noticiários e o clima; ou seja, as mesmas experiências e informações que temos em comum como espectadores servem para nos separar como indivíduos. É a mesma coisa num grande jogo de futebol: toda pessoa que assiste da arquibancada é um ninguém, não importa quem ela seja. Eles podem sentar-se lado a lado, mas os olhos estão focados no campo. Se eles conversam, quase nunca é sobre eles, mas sobre o jogo que está sendo jogado à sua frente.

E apesar de os fãs de futebol não poderem participar dos eventos do jogo ao qual estão assistindo, ou exercer qualquer influência real sobre ele, eles dão extrema importância a esses eventos e associam suas necessidades e desejos com o resultado do jogo de um modo muito incomum. Em vez de concentrar sua atenção em coisas que sejam relevantes aos seus desejos, eles reconstroem os seus desejos para fazer parte do que eles estão assistindo. Até mesmo sua linguagem confunde as conquistas do time com o qual se identificam com suas próprias ações: "fizemos um gol!", "ganhamos!" gritam os torcedores de seus assentos e sofás.

Isso entra em extremo contraste com o jeito no qual as pessoas falam de coisas que acontecem em suas próprias cidades e comunidades. "Eles estão construindo uma nova auto-estrada" nós dizemos sobre as mudanças em nossa vizinhança. "Qual vai ser a próxima coisa que eles vão criar?" dizemos sobre os últimos avanços da tecnologia. Nossa linguagem revela que nós nos vemos como espectadores em nossas sociedades. Mas não são "Eles", os misteriosos Outros, que fazem o mundo ser o que é ― somos nós, a humanidade. Nenhum pequeno grupo de cientistas, políticos e urbanistas pode ter feito todo o trabalho, criação e organização que foram necessários para transformar esse planeta; foi preciso e ainda é todos nós, trabalhando juntos, para fazê-lo. Somos nós que fazemos, diariamente. E ainda assim muitos de nós ainda pensam que nós podemos ter mais controle sobre jogos de futebol do que podemos ter sobre nossas cidades, nossos trabalhos, ou mesmo nossas vidas.

Nós podemos ter mais sucesso em nossa busca pela felicidade se tentarmos realmente participar. Ao invés de apenas aceitar o papel de espectadores passivos dos esportes, da sociedade e da vida, cabe a cada um de nós descobrir como ter um papel ativo e significante na criação do mundo ao nosso redor e dentro de nós. Talvez um dia nós possamos construir uma nova sociedade na qual todos nós possamos estar envolvidos nas decisões que afetam nossas vidas; só então poderemos realmente escolher nossos destinos.



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