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Espere Resistência
CrimethInc


Antes nós pensávamos que já era duro para nós, mas os anos após a investida contra o muro nos ensinaram novos significados da palavra luta. Às vezes, quando tudo entrava em colapso, eu tinha a distinta sensação de vertigem. toda vez que chegávamos no fundo do poço, descobríamos que dava para ir ainda mais fundo.


Depois que passamos a achar que não estávamos mais vencendo uma guerra contra o capitalismo, não havia nada que nos impedisse de descontar toda nossa frustração uns nos outros. Todos nossos coletivos e redes se romperam em recriminações amargas. Os trabalhadores eram culpados de só estarem interessados em suas próprias necessidades; os ativistas eram culpados por não se organizarem junto com os trabalhadores; os estudantes eram culpados de serem muito privilegiados para se comprometerem de verdade com a luta; perdedores como eu eram culpados de assustar as pessoas com nossa atividade criminosa e táticas violentas; homens, brancos e heterossexuais eram culpados de alienar os nossos aliados mais oprimidos. Claro, era tudo verdade, mas ficar de picuinhas não ia nos levar a lugar algum.


Alguns insistiam que não éramos altruístas o suficiente, que a nossa revolução nunca decolaria porque nós estávamos apenas lutando por nós mesmos ao invés de lutar pelos realmente oprimidos. Eu não concordava; na minha versão da história, a nossa resistência começou quando Kate conectou a sua luta pessoal por libertação com o ativismo mais abstrato dos estudantes, e terminou a partir do momento que nós mesmos começamos a lutar batalhas abstratas. Até onde me tocava, juntar o nosso desejo por uma vida radicalmente diferente com o ativismo de serviço era como matar a galinha que colocava os ovos de outro. Eu distribuía comida pelas mesmas razões pelas quais eu roubava para mim mesmo ― eu queria que todos tivessem o suficiente para comer, não dando a mínima para as leis ou para a economia. De jeito nenhum eu iria aceitar ordens de um ativista profissional ou de um sindicalista que alegava falar pelas pessoas com as quais eu cresci, trabalhei e com quem lutei, lado a lado.


Outros, principalmente delinqüentes como eu, incitavam o restante das nossas redes a escalar para táticas de guerrilha, mas eu sabia aonde isso ia levar ― eu ainda lembrava do que tinha acontecido com nossos amigos que partiram para ir atrás de carreiras criminosas antes de sermos politizados. O nosso embalo era contagiante porque estávamos atuando abertamente e os outros poderiam se juntar a nós; nos isolar em células clandestinas nos daria certeza de que não seríamos seguidos por outra geração.


Quando ficou claro que o mundo não estava mudando para melhor, todos sumiram, até mesmo quem eu conheci no acampamento. A maior parte deles voltou para o que conheciam: quem havia abandonado os estudos voltou à escola, viajantes foram para cidades mais empolgantes, os empregados que tinham sido mais ativos perderam seus empregos e conseguiram outros. Até onde eu sabia, Samia estava tirando um pós-doutorado em algum lugar e Pablo procurava um editor para seu inevitável livro. Eu a imaginei conseguindo permanência por suas teses provocativas sobre as ações que mandaram meus amigos para a prisão, e ele comendo de uma bandeja de salgadinhos em uma sessão de autógrafos enquanto eu esperava para recuperar as sobras. Talvez os seus textos ofereceriam reflexões astutas sobre o nosso fracasso de mobilizar a classe trabalhadora ou estabilizar contra-instituições duradouras.


Tudo que sobrou para o meu pessoal depois que as coisas esfriaram foram pequenos crimes ― ainda precisávamos sobreviver de algum jeito ― e a bebida. A bebida era o verdadeiro problema, ela crescia e preenchia todos os vazios que se abriam. "O que você acha que vai entrar em colapso antes: o capitalismo ou o meu fígado?" Eu já tinha problemas suficientes tentando manter a minha sanidade mental, então eu não recomecei; mas não beber me afastava do restante dos meus companheiros, que consideravam uma crítica às suas escolhas com as quais eu não concordava.


Se não restava nada mais dos velhos tempos, ainda haviam contas vencendo. Eu já tive bastante sorte nas vezes em que fui preso em não ser reconhecido pelas coisas mais sérias nas quais estive envolvido, mas Diego não teve tanta sorte. Àquela altura, o coletivo de apoio legal mal conseguia se manter de pé, e eles se recusavam a ajudar porque a ação pela qual ele estava sendo condenado havia sido controversa e aquela mobilização já havia acabado há muito tempo. Eu me lembro de ir ver a avó dele para lhe dizer que o seu neto estava sendo detido por uma fiança de cinqüenta mil dólares e que nós não havíamos conseguido levantar nem metade deste dinheiro; era doloroso se dar conta de como o meu espanhol ainda era ruim, quão pouco me dediquei a isso nos últimos anos. Nada é pior do que ligar para amigos e depois para conhecidos depois de algo desse tipo, acordá-los um a um, tentando encontrar um lugar para dormir. E o pior é que ainda tive que pedir o telefone dela emprestado.


Durante todo o tempo, podíamos ouvir o mundo caindo, mas eram as pessoas comuns que estavam recebendo todo o impacto, não aqueles que começaram todo esta destruição. Terroristas estavam explodindo transportes públicos, prisões estavam transbordando, desertos estavam se espalhando através dos continentes, tempestades geradas pela poluição industrial estavam dizimando cidades inteiras. Certa noite o noticiário mostrou vigilantes brancos apontando armas para refugiados, forçando-os a recuar para um bairro destruído, contaminado por químicos tóxicos. Nós devíamos estar lá com nossos grupos de afinidade, fazendo os racistas recuarem com nossas próprias armas, ajudando a coordenar a evacuação nos termos dos sobreviventes. Era tudo que o nosso lado podia fazer para unir alguma ajuda junto com a Cruz Vermelha.


E ainda por cima, meu relacionamento com Kate estava naufragando. Era uma história velha, triste, comum: os amantes apaixonados que tentam mas falham ao manter o romance num mundo letal para os romances. Nós não morávamos mais juntos; eu a visitava em um galpão no qual ela ficava atrás de uma casa coletiva do outro lado da cidade, e nós discutíamos sem trocar uma única palavra. Enquanto tudo desmoronava e queimava, eu jurei para mim mesmo de novo e de novo aquele sonho impossível: que faríamos um mundo de magia no qual a magia do amor, também, poderia sobreviver.




Tem um lado ruim em abrir-se para milagres que raramente são reconhecidos por aqueles que os celebram. Depois que você abandona o caminho de sempre e tudo é possível, o mundo pode realmente lhe dar presentes maravilhosos; mas se podem acontecer coisas que são milagrosamente boas, também podem acontecer com você coisas sobrenaturalmente ruins.


Eu refletia sobre isto enquanto arrumava meus sapatos sob o meu saco de dormir para que o teto frio de metal não ficasse desconfortável demais sob os meus joelhos. Eu deitei e olhei além das antenas de rádio, das chaminés cuspindo fumaça e das sirenes de polícia que designavam aquele bairro como território ocupado. A lua flutuava acima da minha cabeça, uma eterna lâmpada dourada. Eu tinha esquecido que haviam coisas além das fronteiras do pesadelo ao meu redor. O disco amarelo saiu de foco; eu pisquei e lágrimas escorreram pelo meu rosto.


Quando alguém está totalmente isolado, as suas fantasias guinam para o extremo oposto à sua experiência diária: foi assim que eu desenvolvi uma vida interior mais rica naquele inverno. Na total privação e decepção, eu podia facilmente imaginar todos os prédios vazios ao meu redor como centros sociais com creches e tratamentos de reabilitação gratuitos, todos as vagas de estacionamento vazias como jardins comunitários floridos, todos os estranhos que passavam apressados com olhos baixos como vizinhos com quem eu compartilhava camaradagem e boas vibrações. Diego andaria livre sob o sol novamente, minha mãe receberia um tratamento para seu problema de coluna, e nós três nos encontraríamos no refeitório feito no vestíbulo de uma mansão. O pessoal do acampamento estaria lá, até mesmo os que foram para a prisão, se tornaram economistas ou cometeram suicídio, e depois faríamos fila para lavar nossos pratos. Era mera compensação psicológica, a última trincheira na defesa contra o desespero; mas se tanto sofrimento e miséria eram possíveis, putamerda, quanta alegria deveria ser possível também!


Quer ou não isso se tornasse realidade, eu estava satisfeito que eu tinha feito a escolha certo apostando tudo na nossa luta. Eu estava mais feliz congelando sozinho até a morte do que eu estaria se eu fosse o empregado do mês, mesmo se eles me dessem meu próprio restaurante.




Estar do lado dos perdedores na batalha contra o sistema capitalista me deu um maior respeito pelos outros perdedores. Durante todas nossas vidas ouvimos que a classe trabalhadora era composta de fracassados que não tentaram o suficiente ou não tiveram educação o suficiente ou, na melhor das hipóteses, não tiveram uma oportunidade igual. A conclusão era que todos poderiam escolher ter sucesso e ser da classe média, se tivessem a oportunidade.


Pelo contrário, muitos de nós escolhemos de nossa própria vontade não jogar o jogo, quais quer que fossem as conseqüências. O bairro de negros em ruínas que eu visitei durante a minha rota de distruibuição de alimentos ainda era o sofrimento das conseqüência da heróica derrotas dos Panteras Negras; em retaliação, as forças da supremacia branca conseguiram que proprietários de imóveis, traficantes de drogas e incendiários o destruíssem, e então o dividiram ao meio com uma rodovia. Nos parques de trailer em que eu brincava quando criança, mulheres de meia-idade vestiam roupas minúsculas confeccionadas para modelos amaciados, descaradamente exibindo corpos que a mídia corporativa considerava mais obscenos que pornografia; hoje eu as vejo como heroínas na luta contra as normas de beleza patriarcais. Os sem-teto deveriam ser os maiores exemplos de fracasso, mas depois que passei tempo suficiente com eles eu aprendi que alguns deles estavam nas ruas por escolha ― como eu. Eles também eram heróis: nenhum sem-teto jamais produziu clorofluorcarbono suficiente para danificar a camada de ozônio ou despejou a vó de alguém da sua casa.


Antes eu desprezava essas pessoas, jurei que escaparia do mesmo destino a todo custo; agora eu os via como camaradas que se recusavam a se desgraçarem por prêmios inúteis. Os vagabundos preguiçosos e trabalhadores migrantes que viram metade do mundo sem nunca olhar um panfleto de agência de viagens, os empregados que recebem salário-mínimo que nunca quiseram ser chefe de ninguém, os trabalhadores de caixas com câmeras apontadas para eles de todos os lados ele não são menos valiosos do que os anarquistas de nomes complicados que derrotaram exércitos imperiais e escaparam de prisões de segurança máxima só para morrer de tuberculose e alcoolismo. Nós éramos todos fracassos gloriosos; e agora só nós faltava triunfar.




Quando Samia reapareceu naquela primavera, eu fui atrás dela e lhe pedi para reservar algum tempo para conversarmos. Meu período de exílio havia me concedido novos poderes de humildade: eu iria pedir desculpas pela forma como nosso último encontro havia acabado. Quer ou não ela achasse que tinha algo para se desculpar, quer ou não ela ainda estivesse envolvida na luta revolucionária, eu não tinha nada a perder assumindo responsabilidade pela minha teimosia destrutiva.


Por coincidência, ela tinha voltava de um trabalho no mesmo bairro que eu havia visto na televisão no último outono; ela não tinha voltado à universidade no fim das contas. A sua pele estava áspera e já bem bronzeada no começo de março, e os seus olhos brilhavam com uma luz que eu não via há muito tempo. Eu senti uma pontada de inveja que se tornou amarga quando eu lembrei de nossos primeiros encontros. Ao mesmo tempo, era interessante que ela ainda estivesse envolvida com as coisas; talvez fosse um erro meu assumir que todos como ela tinham desaparecido na aposentadoria.


Meus alhos se fixaram melancolicamente nas folhas à frente do nosso banco no parque, eu discorri sobre todas as vezes que eu senti ter sido insensível, autoritário ou arrogante durante os anos que nos conhecemos. Ela me escutou pacientemente, com uma leveza no seu comportamento que contrastava com a minha postura de homem condenado.


"Obrigada por me contar tudo isto. Eu realmente não sei o que dizer."


Eu dei de ombros. "Não diga nada, eu acho. Apenas fique sabendo que eu andei pensando sobre estas coisas. Eu queria que tudo acabasse de forma diferente, e eu entendo como eu contribuí para que as coisas não dessem certo."


Ela ficou em silêncio por um minuto. "Sabe, eu respeito muito que você ainda esteja aqui mantendo os mesmos projetos de pé. O que Diego disse é verdade, mesmo: nós basicamente fomos embora e abandonamos vocês."


Agora eu fiquei em silêncio. Ela ajeitou suas pernas e continuou.


"O irônico é que eu voltei determinada e me envolver novamente logo antes daquela reunião, mas depois daquilo foi difícil querer ficar e eu fui varrida pela primeira coisa que vi que estava acontecendo fora da cidade. Quem sabe se eu realmente teria ficado, talvez aquela discussão apenas me deu a desculpa que eu queria. É tão intimidante se comprometer a se fincar em um lugar ao invés de seguir a frente de batalha para onde quer que pareça que temos uma chance de ganhar."


"Talvez ficar não fosse a coisa certa para você, eu sinto como se tivéssemos fracassado completamente aqui. Pelo menos parece que você manteve umas chamas acesas." Eu a olhei nos olhos pela primeira vez desde que comecei a falar, e então virei o rosto. "Eu tenho muita coisa aqui, para deixar para trás. Este é meu lar. Eu não posso ficar andando pela Europa enquanto as pessoas aqui passam fome e meus amigos apodrecem na prisão."


"Você não devia dizer que fracassou." Ela me olhava atentamente; meus olhos estavam novamente nas folhas. "Você ainda está aqui. É uma vitória que qualquer um de nós ainda esteja vivo, ainda mais livres para sentar aqui e conversar, depois de algumas coisas que passamos."


"A única vitória com a qual me importo é ter certeza de que todo mundo tem o que precisa ― isso e queimar essas prisões. Você sabe disso."


"Ok, veja as coisas deste jeito: para fracassar, você tem que estar totalmente comprometido com algo, desejá-lo com todo seu coração, acreditar que a vida será insuportável se isso não se tornar realidade. Todo mundo tem coisas que desejam tanto assim, o que eles chamam de desejos impossíveis, eles só não vão atrás deles porque doeria demais se eles nunca os alcançassem. Eu acho que a maior parte das pessoas nem reconhece o que eles realmente querem para si, eles estão tão assustados de não conseguir. Você falhou: isso é um verdadeiro feito."




A noite estava caindo e estava ficando frio, mas nossa conversa seguiu vagando de tópico em tópico. Finalmente, nós voltamos ao assunto da reunião. Havia algo mais que eu precisava dizer a respeito.


"Você sabe que nós tentamos trabalhar junto com todos os outros, não sabe? Ouve uma grande assembléia antes de você chegar, mais de cem representantes de diferentes grupos, em sua maioria ONGs, pessoas deste tipo, já que nosso pessoal ainda não tinham chegado na cidade ou estavam ocupados com outras coisas. Eu estava lavando os pratos no centro de convergência ― Diego estava lá pra nos representar, e confiava neles para tomar decisões que funcionassem para todos. Eu não podia acreditar quando eu ouvi que eles tinham decidido, apesar de todas objeções, denunciar a ação direta e organizar uma marcha que levasse as pessoas para longe do muro."


"Honestamente, eu não fazia idéia, eu havia recém chegado lá. Eu estava bufando, eu estava acostumado a chegar depois das coisas já estarem decididas. Eu só descobri sobre a assembléia depois. Eu me senti burro, mas os dados já haviam sido lançados, e eu estava mais bravo sobre o modo como vocês haviam se portado ― era mais pessoal, eu confiava em vocês mais do que jamais confiei naqueles liberais."


"Malditos autoritaristas!" Pensar sobre a assembléia me deixava furioso novamente. "O irônico é que esses eram os mesmo filhos da puta que querem saber quem irá coletar o lixo quando falamos de uma sociedade anarquista. Agora mesmo nós coletamos o lixo deles! Eles estão é com medo de sujar as suas mãos. Eles acham que este sistema funciona bem porque eles nunca tiveram que se aproximar do seu próprio lixo ― enquanto alguns de nós têm que viver do lado dele, ou dele!"


Samia interrompeu novamente "Nós tivemos que lidar com essas pessoas no último inverno: nós não tínhamos nossa própria equipe de imprensa, então eles conseguiam levar crédito por tudo que nós fizemos. Estávamos todos lá como voluntários enquanto eles recebiam salário, e eles insistiam em tentar nos dar ordens! Metade do trabalho deles era arrancar doações de pessoas que realmente queriam ajudar, mas essas doações pagavam por anúncios na parte de trás de caixas de pizza por todo país, enquanto as pessoas que eles deveriam ajudar estavam enfiadas em trâileres ou ficando com suas famílias em outras cidades!"


"É, eu vi essas caixas de pizza. Que golpe, as nossas tragédias pagam os salários deles."


"É irônico que essas pessoas criticam a ação direta alegando que só pessoas brancas privilegiadas podem participar, e então quando pessoas de cor fazem ação direta ele descrevem como atividade criminosa apolítica ― chamando de pilhagem, por exemplo. Nem todos nós temos a opção de nos limitar aos meios legais! Eu estou tão de saco cheio de ativistas brancos dizendo que táticas de militância são só para jovens, brancos do sexo masculino quando pessoas como eu também estão claramente envolvidas. Nem me fale de paternalismo: a minha existência é tão inconveniente para eles que eles fingem nem me ver! Se eles me reconhecessem como ativista de ação direta, será que eles diriam na minha frente que eles acham que eu estou enganado sobre o que é melhor para mim?"


"Eles poderiam muito bem serem honestos e admitirem que a ação direta é ruim para eles, como organizadores de classe média que não querem perder a sua legitimidade."


"Mas veja, porque nós não ignoramos a assembléia e tentamos alcançar as pessoas diretamente? Antes, quando nós fazíamos as coisas por aqui, nós sempre íamos direto às pessoas em um monte de comunidade diferentes, não só os guris vestidos de preto. Eu sei que haviam problemas de segurança, mas poderíamos ter nos organizado abertamente com os outros e secretamente entre nós."


"Nós fomos superados, eu acho. Depois que aqueles sanguessugas descobriram quanta força nós tínhamos, eles todos se grudaram na gente. Todo partido estava recrutando em todas as reuniões, todos as múmias ressuscitaram da aposentadoria para tentar pegar tudo para eles. Eles organizaram grupos de frente e coalizões camufladas para se parecerem conosco para que pudessem absorver todos que queriam se envolver, eles..."


"Eu lembro de tudo isso. Mas se tivéssemos feito nosso trabalho..."


"É claro, com certeza, mas você mesmo disse" ― eu diminuí a velocidade e tentei falar de forma mais suave, como Kate teria feito ― "você também não apareceu para fazer isso. Nós estávamos exaustos, já tínhamos passado por muita coisa só para chegar naquele ponto." Nós dois fizemos uma pausa, recuando em lembranças particulares. "A verdadeira questão é por que tantas pessoas que dizem que querem o que nós queremos recuam quando o momento chega. É como você dizia antes sobre o fracasso: eu acho que nós só falhamos porque ninguém conseguia nos imaginar vencendo. Todas as pessoas que participaram da assembléia e levaram-na adiante mesmo quando ela se voltou contra eles, estavam acostumados com a derrota, a aceitar que tudo que eles queriam era impossível; eles não sabiam como fazer outra coisa, assim como nós não sabemos como parar de brigar mesmo quando somos os únicos no campo de batalha."


"Como o uniforme negro que todos os novatos usam, como se estivessem em um funeral: é praticamente uma glorificação do fracasso, uma admissão de que o máximo que podemos fazer é nos recusarmos a participar e sermos destruídos. Isso é exatamente o oposto de tentar e falhar ― é uma farsa, não uma tragédia."


"E todos os grupos que dizem que querem mudanças radicais mas sempre tentam impedir aqueles que tentam realizá-las, eu acho que eles fazem isso porque não querem vencer, porque eles se dedicam a fracassar. Eles não ousam arriscar o que têm, então, para eles, não é nunca o momento de agir, sempre é preciso se preparar mais. Enquanto eles mantiverem seus papéis de objetores de consciência, enquanto as suas mãos estiverem limpas, eles não se importam com o que acontece com o resto de nós, eles não se importam se as pessoas têm que dormir em telhados, florestas são transformadas em polpa e cidades são bombardeadas até virarem pó."




Duas horas depois, ainda estávamos no banco, encolhidos juntos para ficarmos quentes no ar gelado da noite. Samia estava contando uma história da sua infância. Eu conseguia visualizar vividamente tudo que ela descrevia, apesar de eu nunca ter ido a recitais, acampamentos de verão ou qualquer coisa do tipo na minha infância.


Eu me distraí. Ser capaz de falar com alguém sobre estas coisas, sem toda a tensão e ressentimento que se tornaram tão comuns, era um alívio, um tipo de absolvição. Ao mesmo tempo, eu tinha a sensação de que a minha distração era um sinal de aviso: eu queria desesperadamente fazer as coisas darem certo com KAte, e a última coisa que eu precisava era me complicar com outra pessoa. Mas nos aproximar mais um centímetro enquanto falávamos, só porque estava tão frio e nós finalmente havíamos resolvido um conflito que tinha ficado entre nós por anos, por si só, não faria mal nenhum. Era bom; será que pode realmente ser um crime querer sentir-se bem novamente, apenas por um minuto, de uma forma tão inofensiva?


"...então não podemos ter medo de desejar ou acreditar em coisas ultrajantes, nós temos que nos doar completamente a isto sem medo de perder, ou arrependimento, ou decepção." Ela pegou minha mão entre as suas e olhou direto nos meus olhos. "Você quer me beijar?"


Eu engoli em seco e hesitei, então assenti. Lá se vai minha tentativa de ajeitar as conseqüências dos meus antigos erros; agora tenho novos problemas para resolver.

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