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“[...] ousai abraçar a causa da liberdade. P.-J. Proudhon

Hoje alguns setores da esquerda encaram mais de frente a discussão entre posse e propriedade, trazendo esse como um dos temas centrais na questão dos sem-terra, dos sem-teto e, de maneira mais genérica, para a discussão do capitalismo, ou de seu pilar central, a propriedade privada. Exemplos de autores ou setores da sociedade que vêm trazendo este tema à tona são John Holloway - autor do comentado livro Mudar o Mundo sem Tomar o Poder (1)- e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - o MST.

Preocupados com as conseqüências contemporâneas do capitalismo, tanto Holloway, quanto o próprio MST, discutem a função da propriedade privada e a comparação entre propriedade privada e posse - o que implica a noção de propriedade coletiva.

Talvez pela formação fora do anarquismo, tanto Holloway, quanto o próprio MST não tenham estudado Proudhon, que, ainda em 1840, trazia esta importante discussão em um dos seus mais relevantes livros, O que é a Propriedade (2).

Pautando-se no conceito de justiça, Proudhon coloca em oposição o sistema capitalista e o sistema comunista. Segundo Proudhon, o capitalismo é baseado na propriedade privada e constitui-se como um sistema injusto, se avaliado com base nos princípios da igualdade e da lei (3). O sistema comunista, ou a “comunidade”, como chama Proudhon, é um sistema baseado em uma igualdade forçada e imposta, que traz uniformidade e, por estes motivos, também se constitui como sistema injusto, se avaliado segundo princípios da independência e da proporcionalidade.

O sistema que se oporia a estes dois, é o sistema da liberdade, ou a anarquia. Na sociedade em anarquia, já não existiria a propriedade privada, que seria substituída pela propriedade coletiva e pela posse. No sistema da anarquia, também não há uma igualdade imposta, fruto do autoritarismo e da falta de pluralidade e de liberdade. A anarquia é uma sociedade que está livre do jugo do capitalismo (e, por conseqüência da propriedade privada) e do Estado (e por conseqüência de sua opressão, mesmo que travestida de igualdade). Constitui-se como um sistema baseado na liberdade e na igualdade. A anarquia, segundo Proudhon, é uma sociedade baseada em quatro princípios: igualdade, lei, independência e proporcionalidade.

No sistema da anarquia, a propriedade privada é substituída pela propriedade coletiva, o que implica em uma noção de posse. Mas, enfim, qual é a diferença entre propriedade e posse?

A propriedade privada constitui um meio de exploração, visto que alguns poucos possuem-na, e, usando-na a seu próprio favor, exploram outros muitos, que não são proprietários. Isto acontece tanto para um proprietário rural que contrata trabalhadores do campo para trabalhar e, assim, rouba parte de seu trabalho (mais-valia), mas também para o proprietário rural que subloca suas terras para camponeses trabalharem, cobrando deles para que ali permaneçam. Na cidade, o proprietário de um negócio, responsável pela contratação de trabalhadores assalariados, também os explora, visto que não os paga os frutos completos de seu trabalho. A idéia básica de Proudhon é a seguinte: sendo verdade que cada trabalhador tem direito aos frutos completos de seu trabalho, a partir do momento em que existe a propriedade privada, e alguém, por ser um proprietário, impede que os trabalhadores recebam os frutos completos de seu trabalho, isto se constitui em uma exploração, ou, de maneira mais direta, em um roubo.

No sistema defendido por Proudhon, a propriedade privada, e o próprio capitalismo, seriam substituídos pela propriedade coletiva e pela posse. Vejamos o que Proudhon dizia em 1840:

“A posse individual é a condição da vida social; cinco mil anos de propriedade o demonstram: a propriedade é o suicídio da sociedade. A posse está dentro do direito. A propriedade opõe-se ao direito. Suprimi a propriedade e conservai a posse; e, só com essa alteração no princípio, mudareis tudo nas leis, o governo, a economia, as instituições: expulsareis o mal da terra (4).”

Proudhon aqui critica novamente a noção de propriedade privada e coloca a posse como justa. Já propõe aqui uma clara substituição da propriedade privada pela posse. Ele enfatiza ainda que:

“Como o direito de ocupar é igual para todos, a posse varia de acordo com o número de possuidores; a propriedade não pode se formar (5).”

Para Proudhon, o trabalho humano resulta de uma força coletiva e como a propriedade só pode constituir-se pelo trabalho, necessariamente a propriedade, por este motivo, torna-se coletiva e indivisa. Para ele, o trabalho já seria responsável por demonstrar que a propriedade privada é impossível e injusta. A propriedade, para Proudhon, deve pertencer àqueles que nela trabalham, e este é o conceito de propriedade coletiva: aquela que não pertence a uma ou mais pessoas; não pertence também ao Estado. A propriedade coletiva é de fato pública (6) , pertence ao povo que irá utilizá-la em seu próprio proveito.

Sendo assim, em um sistema de propriedade coletiva, não deve haver um proprietário que detém a propriedade, que impede os trabalhadores de receberem os frutos de seu trabalho, e que também impede os trabalhadores de serem os senhores de si mesmos. Não há aqueles que exploram e aqueles que são explorados.

Se a propriedade é de quem nela trabalha, enquanto um grupo produz nesta propriedade, ele tem seu direito de posse. Se amanhã, esse grupo for substituído por outro, este outro grupo terá a posse desta propriedade. A posse impede que uma ou mais pessoas se apropriem de uma propriedade para utilizá-la em benefício próprio, por meio da exploração. A propriedade só pode ganhar vida com o trabalho, ou seja, quem ocupa uma determinada propriedade, e nela trabalha, é aquele que detém a sua posse, algo que é justo para Proudhon.

Trazendo esta discussão para o movimento de ocupações rurais e urbanas de hoje, o assunto é o argumento é semelhante. O movimento de ocupações ocupa terras ou imóveis desocupados, ou seja, sem um uso social. Pertencem a proprietários que não trabalham nestas propriedades e nem mesmo dão a elas qualquer finalidade social. Se considerarmos esta visão de Proudhon, de que somente o trabalho traz função social à propriedade, como nestas propriedades não há trabalho, necessariamente não há função social. É por isso que, utilizando este argumento, os trabalhadores ocupam o imóvel, dando então uma função social a ele. Segundo a noção de justiça de Proudhon, a própria propriedade privada já é injusta; no entanto, se há uma propriedade que não possui qualquer função social, isto é pior ainda.

É por isso que estes movimentos reivindicam a noção de posse, em oposição à noção de propriedade. O movimento não invade as terras, como dizem os proprietários ou a imprensa burguesa de plantão. Eles ocupam uma propriedade que, por julgarem-na injusta e sem qualquer função social, não tem como se justificar que pertença a uma pessoa ou grupo. Sendo assim, justo seria dar uma função à propriedade e injusto seria manter uma propriedade que não tem função social. A noção de justiça inverte-se.

Se Holloway e o MST chegam nesta discussão recentemente, vale ressaltar que os anarquistas discutem a questão há mais de um século. No entanto, não há dúvidas que a discussão se faz necessária, principalmente para os movimentos que trabalham com a questão da terra e da moradia. Sustentemos a posse em detrimento da propriedade privada, da mesma forma que fez Proudhon!

  • Artigo produzido como contribuição ao Grupo de Estudos do Anarquismo de São Paulo que, em seu programa Anarquismo: Federalismo e Organização, havia discutido a conclusão do livro O que é a Propriedade, de P.-J. Proudhon em julho de 2007.

1) Publicado pela editora Boitempo em 2003.

2) Publicado pela editora Martins Fontes em 1988.

3) Não confundir a noção de lei de Proudhon com a noção de lei que temos hoje. Neste caso, a lei não seria uma lei governamental, mas uma lei da sociedade, baseada na ciência dos fatos, e pautada inteiramente na necessidade de cada um.

4) Proudhon, P.-J.. O que é a Propriedade. São Paulo: Martins Fontes, 1988 p. 244.

5) Ibidem p. 244.

6) Não confundir público com estatal, o que é bem diferente.

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