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Comunalismo e Autonomia
Jaime Martínez Luna


«O porvir, o futuro, não é do cosmos, de meu século, de meu país. Minha existência de nenhuma maneira será dedicada à preparação do mundo que me sobreviverá. Pertenço irredutivelmente à minha época
(Frantz Fanon, 1966.)


Ao refletir sobre a discriminação e democracia em um estado multiétnico, não nos referimos à realidade individual enfrentada pela população índia do México em 1994, mas à realidade das coletividades, comunidades, organizações, que dia a dia reformulam sua relação com um estado-nação que no discurso reivindica a pluralidade, mas que na prática insiste na uniformização social e econômica.

Tampouco nos referiremos à explicação histórica deste fenômeno, já que os povos índios atuais são o resultado permanente das imposições culturais e econômicas do estado moderno, portanto não são fruto de reminiscências mas de relações sociais atuais sempre diferentes, permanentemente sustentadas em interesses que impedem o ou pelo menos limitam o desenvolvimento pleno da sociedade indígena, que também tem suas propostas de desenvolvimento, que também tem suas propostas inovadoras de convivência social.

Nossa experiência se limita de maneira precisa a uma região do Estado de Oaxaca, sem embargo temos compartilhado estas reflexões com comunidades e organizações de varias regiões do Estado, assim como com organizações e pensadores indígenas de todas as regiões do país, de forma que se destaco as experiências diretas de minha região de origem estas se sustentam no que se reflete em vários estados do país. Todo este procedimento ou conceito de comunidade e conduta explica nosso modo de ser indígena, um conceito que por certo temos desenvolvido em outros trabalhos, mas que abarca a presente reflexão.

Nosso sagrado território comunal[]

A reorganização do estado revolucionário, teve que ceder de algum modo às pressões dos camponeses encabeçados por Emiliano Zapata, o que beneficiou em grande medida a pequena propriedade representada pelo povo de Carranza, sem embargo, neste processo as comunidades indígenas puderam sustentar a defesa de seus territórios comunais. Embora seja certo que na atualidade o território de luta Zapatista, é maioritariamente mestiço, naqueles anos, nossos irmãos nahuas foram um grande sustento para suas políticas. Embora os territórios comunais fossem uma realidade de muitos anos atrás, a luta Zapatista permitiu sua sobrevivência, tanto que na constituição foi estipulado de maneira muito precisa os três regimes de propriedade: a pequena propriedade, a ejidal e a comunal.

Sempre se considerou que os territórios comunais eram improdutivos, mas eles eram defendidos por uma população que naqueles anos não podia ser atendida pelo estado moderno. Talvez seja por isso que a imensa maioria de territórios comunais se mantiveram intatos, os demais território foram repartidos em pequenas propriedades e outros muitos convertidos em ejidos. As propriedades comunais estão localizadas nas áreas mais batidas, em zonas de baixa produtividade agrícola, em regiões agrestes e desprovidas da comunicação. Todos os territórios susceptíveis de ser capitalizados caíram em mãos de uns quantos, o comunal acabou conferido a uma população plenamente discriminada do progresso geral da nação.

A discriminação do território comunal se revela na ambiguidade manifesta da lei da reforma agrária, um processo que desemboca nos anos noventa com as modificações no Artigo 27, onde se assinala que os territórios comunais indígenas serão matéria de proteção por parte do estado, longe disso representar uma garantia o que ocorre na realidade é o contrário, as modificações no Artigo 27 tornaram essas terras susceptíveis de venda pois as assembléias comunais deixam de ser a máxima autoridade para converter-se em um simples órgão de governo. Quer dizer, se nos anos setenta a ambiguidade lhes garantia a sobrevivência, nos anos noventa elas são postas à venda; e são postas à venda porque o processo econômico nacional, marcadamente neoliberal, possibilita que os recursos até agora não descobertos e situados em zonas de território comunal, tornaram-se um alvo fácil diante dos interesses do grande capital, além disso, a extrema pobreza que padecemos, da qual mais adiante comentaremos, aumenta as possibilidades de uma alienação paulatina, e ou até mesmo, do extermínio das populações que vivem nessas regiões.

Desde outra perspectiva, o território comunal tem sido para os povos indígenas não apenas um patrimônio para sua sobrevivência, mas a própria fonte de sua realização quotidiana. A terra para a comunidade não significa uma mercadoria mas uma relação, uma expressão profunda de sua visão do mundo. A terra não é uma coisa, é a própria mãe da comunidade. O território é sagrado, o espaço onde a diversidade se reproduz. Para a sociedade mestiça, a terra é mercadoria e um elemento mais de uniformidade, de individualidade, de seguridade econômica. Para os povos indígenas não, a terra é de todos e para as futuras gerações.

A discriminação com respeito ao território se demonstra precisamente na forma como é tratado. O trato liberal tende à homogeneização e não ao respeito à pluralidade. O trato liberal vê o território comunal como um obstáculo para o desenvolvimento, não como um possível aporte de novas relações com a natureza, relações menos individualizadas e mais respeitosas de proteção e conservação do meio ambiente e da biodiversidade.

As possibilidades da democracia no México, encontra de maneira concreta um paralelo no tratamento aos territórios comunais. Um estado democrático deve estar fundado na pluralidade, na livre expressão cultural de seus conjuntos sociais e no profundo respeito às particularidades. O território comunal é uma delas, por ele a democracia é e deve ser compreendida como o respeito à livre relação dos homens com a terra, com seu entorno. Não é de surpreender que a luta dos Zapatistas chiapanecos em 1994 encontra na defesa de seu território uma das essenciais motivações de sua guerra. O mesmo sentimos com o resto dos povos indígenas. Pelo território comunal buscamos a democracia, o respeito à pluralidade, à realidade do México atual.

Nossa irracionalidade econômica[]

Ser pobre em qualquer rincão equivale a ser índio. Tanto em cidades, como nos cinturões de miséria, como nas cidades provincianas, como nas mais distantes áreas rurais mestiças. Ser pobre é ser índio. Creio em verdade que vivemos dentro de uma sociedade nacional verdadeiramente cínica. Os fatores que tem promovido a pobreza nas comunidades indígenas tem vindo do exterior. Em primeiro lugar, a usurpação de nossas melhores terras, a exploração desmesurada de nossa mão de obra, os fatores de comercialização que elevam os custos de nossos produtos e elevam o consumo dos artigos de manufatura industrial, a educação que privilegia a formação individual frente à cooperação comunitária, os meios de comunicação que dão ênfase no triunfo individual e discriminam o êxito coletivo, as leis, etc. Tudo vem de fora.

Definitivamente, não temos espírito empresarial. Mas isto não é ruim como se pretende afirmar. Vejamos por partes esta questão:

Em primeiro lugar, nossa economia está dirigida para dois aspectos: o autoconsumo e os fatores de acumulação para a partilha com a comunidade. Consideremos que a terra nos dá o que necessitamos, e se nos dá mais do que necessitamos, a produção é partilhada principalmente nas festas ou nas celebrações de bairro ou familiares. Assim, a acumulação não significa capitalização; pelo contrario, significa uma oportunidade para reunir a comunidade. Alguém poderia dizer: Ah, que tontos! Então! Quando vão deixar de ser pobres? Claro! É aí que está a diferença! Não nos sentimos pobres. Na realidade fazem com que nos sintamos pobres e nos tornam efetivamente cada vez mais pobres.

Além disso há a imagem do desenvolvimento. O ocidente, com toda sua heterodoxia, acha que o que devemos ter são as comodidades de um mundo urbano, de um mundo que privilegia as mercadorias e não a relação ou a convivência harmônica entre os homens. A mercadoria, a acumulação, são valores que não sentimos como necessários. Apesar disso, sem embargo, pouco a pouco tais coisas nos são introduzidas por todos os poros da vida quotidiana.

A discriminação à nossa economia, é a pior discriminação de que somos vítimas. Essa discriminação é a culpada pela nossa extrema pobreza. Esta discriminação, e novamente como referencia, conduziu os Zapatistas chiapanecos a levantar-se em armas. E com razão, embora não tenhamos todos as mesmas condições para segui-los de maneira imediata.

Enquanto não houver esse entendimento e enquanto houver o envolvimento com a promoção de programas assistenciais como Procampo e programas de solidariedade, não vamos conseguir assumir nossa verdadeira personalidade econômica. Sei em vez da assistência com milho da Conasupo, elevassem nossos preços de garantia de tal modo que o pudéssemos vender a preços respeitáveis, ou melhor, se em vez do uso da propriedade como garantia para pagamento de créditos nos permitissem desenhar nossos próprios programas de produção, a coisa mudaria. Sem embargo o modelo já está estabelecido, é mais importante o índio como mão-de-obra barata no centro, norte e no país vizinho, do que na comunidade. Isto não vai resolver os problemas para alcançar a democracia, menos ainda se as medidas econômicas implementadas continuarem adotando critérios como rentabilidade, produtividade, capitalização, e se nossos próprios intelectuais "imparciais", continuarem nos qualificando de agentes antieconômicos.

De novo surge diante de nós a contradição entre pluralidade e uniformidade. A economia atual, representa o intento de globalizar, de uniformizar, de alinhar, e nossos afazeres, fortemente ligados à proteção de nossos recursos naturais, seguem reivindicando uma relação social harmônica, horizontal, de partilha, de convivência. Além do mais, seguimos considerando que esta é a proposta que nós, os povos índios, temos e devemos reivindicar, embora para o estado seja mais fácil lançar-nos toneladas de cimento, que só cobrem e asfixiam o solo e não resolvem os problemas básicos.

Talvez para muitos de vocês, esta seja uma proposta vulgar e utópica fora de tempo e sustentada em um passado remoto. Não, não é certo. Anteriormente afirmamos que nossos arrazoamentos obedeciam a condições deste século e de maneira concreta as do presente ano. Se consideram que nossa proposta comunitária se fundamenta no ideal, na perfeição, estão equivocados. Nossas comunidades não são puras, precisamente porque somos um resultado permanente de pressões externas e energias internas que nos apresentam uma situação nova cada vez. Em muitas de nossas comunidades a economia está controlada por o comercio, por o poder político de elites o grupos, por maestros que herdando os melhores vícios de ocidente se convertem em líderes nefastos o em caciques, em última instancia. Disputamos espaço com narcotraficantes, e principalmente com políticos representantes de partidos, em alguns casos até mesmo com latifundiários, finqueiros, açambarcadores e vendedores de terras. Cada comunidade enfrenta sua própria realidade, mas em o general podemos afirmar que existem padrões de comportamento, de realização que compartimos todos. Alguns têm seus territórios comunais garantidos, outros estão em trâmite, a outros se lhes foi usurpado, enfim é mui variada nossa realidade social. Pese a isso consideramos que nossa proposta é viável, se é que a entendemos em seu justo contexto. Ponhamos alguns exemplos:

No que toca aos bosques; em um bom número de comunidades, temos integrado nossas empresas comunais. Alguém diria então -- Desde quando não são empresários? não, não se trata disso, tivemos que criar tais empreendimentos diante da pressão dos burocratas, diante da pressão da S.A.R.H., e dos organismos federais. É certo, a madeira vale muito e como tal nossas empresas são verdadeiras empresas coletivas, os lucros os dirigimos para comprar maquinaria, caminhões de transporte, a construir nossos edifícios institucionais, apenas em alguns casos chegamos a repartir alguma utilidade. Tudo é dirigido para fazer obras de beneficio social. Outra coisa é que o problema da recessão que fez com que nosso resultado final diminuísse consideravelmente.

No que diz respeito ao café, muitos de vocês já conhecem a historia. Cai o preço, que é fixado fora de nossas fronteiras, e nossa economia volta a balançar, se o preço do café fica muito baixo apelamos para a produção de milho para garantir alguma liquidez para a compra de produtos que não produzimos. Nos impõem técnicas, consumo de fertilizantes, etc. O caso é que estamos fodidos se esse modelo de produção e de comercialização do café a nível internacional não mudar.

O caso das minas tende a assemelhar-se ao dos bosques, sem embargo, poucas são as comunidades que temos empreendido este caminho. O caso do milho já o temos comentado o mesmo que o do feijão e o do trigo. Só resta afirmar que com estas políticas econômicas, temos perdido as maiores possibilidades de ser auto-suficientes.

Em resumo diríamos que a discriminação dessa nossa racionalidade econômica não parece abrir caminho para um desenvolvimento sadio, pelo contrario nos conduz à globalização e mais ainda neste momento com o tratado de livre comercio, que se apresenta ante nos como uma cova para enterrar nossas possíveis utopias. Só sabemos que não haverá democracia real se não houver respeito a nossos interesses econômicos, ao nosso afã de partilha. Não haverá democracia se não nos permitirem desenvolver nossa própria e livre criatividade econômica.

Nossa desintegrada organização[]

Uma das táticas para garantir o controle político sobre nossos povos tem sido a tática da desintegração da organização regional, o estabelecimento de um sistema de atomização social. No discurso, se pretende eliminar esta desintegração e atomização, na prática as políticas em todos os aspectos a consolidam. É por ela que encontramos em 1944, uma população índia totalmente desarticulada, desintegrada, desorganizada. o paternalismo oficial fez com que nos fossem inventadas cúpulas nacionais, onde se cooptam a alguns líderes e que se inventem outros. Esta história tem sido praticada por muitos de nossos companheiros, não vamos nos deter nisso.

A atomização tem significado para nós a contração política. Temos o controle político de nossa comunidade, em geral, mas não nos permitem exercer esse controle a nível regional, e querer conquistá-lo fará correr muito sangue, basta ler as notícias dos nossos jornais.

A contração tem permitido desenvolver uma organização forte e sólida. A máxima autoridade de nossas comunidades é a assembléia geral. Independentemente dos costumes de cada povo indígena, a assembléia está integrada pelos membros das famílias, pelos jovens maiores de 18 anos, pelas viuvas. É esta assembléia que nomeia seus órgãos de governo. A partir destes órgãos se executam as decisões coletivas e se tenta resolver cada um dos problemas que cada comunidade enfrenta.

O significado do poder em uma comunidade indígena é muito diferente do significado do poder em um mundo mestiço rural ou urbano. Em nossas comunidades o poder é um serviço, ou seja, é a execução das decisões tomadas pela assembléia, pela coletividade. No mundo mestiço rural ou urbano, o poder significa o exercício das decisões da própria autoridade que foi eleita através de mecanismos eleitorais pouco controlados pela sociedade. O poder do povo índio é o resultado de um desempenho cidadão, enquanto que o poder no mundo mestiço rural ou urbano é o resultado de uma relação de grupos que detém ou aspira ao poder. Para ascender ao poder indígena, se tem que demostrar trabalho, uma atitude individual frente aos compromissos comunitários, uma atitude pessoal dentro da família extensa, frente ao bairro, confraria, etc. Um poder que quando se tem é unicamente para obedecer, cumprir e trabalhar. Uma autoridade na comunidade é praticamente um empregado a serviço de todos, um empregado ao qual não se remunera, ao qual não se lhe permite planejar, e quando isso ocorre, o plano pode realizar-se apenas sob consulta. Contrariamente, o poder político das sociedades rurais mestiças ou urbanas é a possibilidade de executar suas próprias idéias, satisfazer seus interesses pessoais, a consulta não existe. Se aspira a esse poder porque existe uma remuneração ilimitada, fato que explica o crescimento da corrupção como expressão do poder público.

Aquilo que se afirma é permitido conferir. A comunidade expressa uma forte afeição ao consenso, à partilha, à decisão coletiva. É vedado se prevalecer do poder político da comunidade para satisfazer desejos de caráter individual por mais sadios que eles possam ser.

Alguém poderia perguntar: Qual é o mais recomendável? O poder que vem de baixo e atende aos de baixo, ou o poder que supostamente é eleito desde baixo, mas que representa os de cima. Nos permitimos refletir sobre nossa distancia da democracia como modelo global de comportamento político e a pretendemos entender como a fórmula que respeita a diversidade de atitudes políticas. Ou seja, até agora a democracia tem sido o interesse em que toda a sociedade participe das decisões nacionais mediante mecanismos muito bem desenhados, mas pouco respeitados pelo partido no poder. Nos sustentamos que a democracia é o respeito à pluralidade política e como tal a partilha da diversidade dentro do estado-nação, permitindo o desenvolvimento de todos os modelos de convivência política que possam existir no país. Durante todos esses séculos de vida republicana, pouco se fez a esse respeito. O maior avanço foi uma pequena modificação no Artigo Quarto Constitucional, que assinala uma certa liberdade cultural aos povos indígenas. Nenhuma garantia ou respeito no aspecto econômico, político ou jurídico.

Frente à solidez de nossa organização comunitária, nossa organização regional representa nosso calcanhar de Aquiles ou nosso ponto mais débil. O estado mexicano tem tomado todas as precauções para que não nos juntemos, para que não tenhamos nenhuma força política. O estado mexicano tem dedicado seus melhores esforços para separar-nos, para nos manter desintegrados. Todos os esforços realizados para construir nossa organização regional durante as últimas seis décadas, foram etiquetados como movimentos subversivos, socializantes, comunizantes, nunca foram entendidos desde outra perspectiva. Sempre, para o partido no poder, temos sido vítimas de partidos de oposição, nunca temos ideias próprias, menos ainda líderes honestos. Insistem em sinalizar que se não nos cuidarmos, mobilizarão contra nós até mesmo forças internacionais. Como exemplo, apontam para o que ocorreu no inicio do levante dos companheiros em Chiapas. Se isso se afirma em 1994, imagine o que se dizia nos anos sessenta.

Pese a isso, nossos esforços por construir uma organização regional não acabaram. Em alguns casos nossas organizações tem ganho batalhas a curto prazo, na maioria das vezes temos sido derrotados, poucas vezes temos saído vitoriosos. Mas nossa guerra segue adiante. É por isso que a autodeterminação ou a autonomia, como se queira entender, surge diante de nossas mentes como uma nova forma de garantir a sobrevivência e como uma garantia para a defesa da pluralidade e da diversidade. Em nossos esforços, nossos obstáculos imediatos são os partidos políticos. Não estamos contra a vida republicana e de seus mecanismos partidistas. O que exigimos é o respeito a nossas próprias formas de eleição de representações regionais. Dada a desintegração a que temos estado submetidos sabemos que não é fácil reintegrar nossas organizações regionais e muito mais difícil a reestruturação de nossas etnias.

Devemos deixar claro que não pretendemos voltar ao passado. Não pretendemos reconstruir as nações pre-hispânicas. Por isso mesmo damos mais ênfase a nossas organizações regionais que representam realidades pluriétnicas, às quais também se incorporam mestiços e crioulos. Tampouco planejamos a separação da nação, nem a criação de estados dentro do estado mexicano.

A discriminação deve ser suplantada pela aceitação, pelo reconhecimento de nossa existência política diversa. Se a discriminação tem significado uniformização política, poderíamos dizer, mesmo que soe paradoxal, que desejamos discriminar a sociedade nacional para que sejamos tratados por igual e dessa maneira se mantenham claras as diferenças e que o apótema liberal entre vigor nestes tempos difíceis; -- "Paz é o respeito ao direito alheio".

Educação e comunicação em aliança[]

A discriminação que provoca mais impacto na coletividade e que fundida ao indivíduo revela suas mais grotescas expressões, surge da educação e da comunicação massiva recebida pelos povos índios.

Independentemente do que houve no passado, no começo deste século, tivemos uma experiência educativa muito forte e positiva. Os professores eram escolhidos pela comunidade, inclusive, esta lhes pagava seu salário que saía do bolso de cada pai de família. Nesta experiência se viu que quando o professor saia da natureza e da cultura comunitária, este, podia ser mais útil, mais fortalecedor da comunidade. Aquele foi um momento em que a educação esteve sob a responsabilidade da comunidade. Mas a festa durou pouco. O estado mexicano não poderia deixar de implantar seu modelo de pensamento; e nos sobreveio um novo desastre.

Os princípios de integração, de assimilação nacional daquelas diversas sociedades e sua integração a um único modelo econômico acelerou o processo uniformizador e nos impôs uma dinâmica da qual ainda não pudemos nos livrar. O conteúdo da educação lançada em nossos povos, vinha carregada de valores nacionais, das qualidades da conquista, das vitorias crioulas, dos acertos mestiços, mas nunca dos aportes de nossos povos indígenas. Ainda na atualidade, os conteúdos seguem sendo barbaramente etnocidas, discriminantes da existência índia. Se privilegia o valor do ocidente e seu conhecimento, se insiste no indivíduo e se perde a comunidade. São unicamente importantes os heróis nacionais. Os esforços dos povos são tratados a nível de caricatura, além disso, os heróis e feitos regionais resultam inexistentes. Se parte do princípio de que a competência é o melhor e não a partilha comunitária.

Diante de tudo isso que resposta se pode esperar da sociedade mestiça? As vítimas imediatas foram nossos irmãos que, como Juarez, saíram para estudar nas cidades próximas à cidade do México. Não é surpreendente que antes do ano de 1968, o Instituto Politécnico Nacional tenha sido designada como escola para os que vinham das províncias e para os índios e a universidade para os setores urbanos e classes medias. Quantos de nós não passou por essas escolas para receber essas expressões de discriminação grosseira. Naco, indito, Oaxaco, são apenas alguns dos apelidos dados àqueles que vinham do setor rural e indígena. Mas vamos falar da discriminação das coletividades. Com a educação oficial, o primeiro efeito que se observou, foi a desvalorização do trabalho camponês, as particularidades escolares foram abandonadas assim como as oficinas criadas nos anos trinta. Vieram técnicas modernas para fortalecer o conhecimento adquirido no quadro negro, veio a proibição do uso de nossos idiomas, veio a salarização estatal e federal do trabalho do professor. Era o fim de tudo o que dizia respeito à comunidade. Este foi um processo lento mas firme, paralelo ao desenvolvimento de novas idéias de como deveria ser nosso progresso e integração educacional e cultural na nação. Com a chegada do rádio comercial e mais tarde da televisão tudo se complicou ainda mais.

Na atualidade, apesar dos esforços indigenistas, e da melhor boa fé que eles possam representar, com sua educação bilingue e bicultural, suas rádios indigenistas, a desintegração comunitária resultante da educação segue sua marcha.

De nossa parte, o que temos conseguido é que através do trabalho quotidiano e do sustento de nossas instituições internas, a educação comunitária de algum modo consegue se reproduzir, detendo de alguma forma os efeitos nocivos da educação formal. Não conseguimos deter todos esses efeitos nocivos, mas afiançamos alguns aspectos que estamos conscientes de não perder. O problema se agiganta na educação media e superior. Nestes níveis, os valores individualizantes aumentam seus efeitos, causam desalento e múltiplas expressões discriminatórias. Para começar, as especialidades agro-pecuárias são reproduzidas através de uma sala de aula e de um quadro negro, mesmo tendo a natureza bem ao lado. Isso resulta em que as especialidades técnicas não respondem às necessidades regionais e os jovens se convertem em mão de obra semi-preparada dirigida ao vizinho país do norte. Obviamente, com os valores absorvidos em sala de aula, os jovens emigrados mesmo fracassando em seus sonhos individualistas não retornam ao seu povo em virtude da perda de sua capacidade e energia comunitária.

No que diz respeito aos níveis tecnológicos e universitários, a coisa se complica ainda mais. O profissional não encontra fonte de trabalho que contrate seus serviços. As únicas são as instituições governamentais que o convertem na melhor das hipóteses em uma máquina de levar recados, e na pior em um mero burocrata. A pior coisa acontece quando se tornam advogados, médicos, ou arquitetos, estes definitivamente ficam nas cidades. Diante de tudo isso, o que podemos esperar da atual educação? Isso sem falar do magistério, que é uma história aparte.

A federalização da educação significou para nós a descomunalização dos professores. Os privilégios laborais no início, e a necessidade de melhores oportunidades de trabalho na atualidade, fez com que as comunidades perdessem seus melhores homens e mulheres. A imensa maioria está agora radicada em volta das cidades, por isso agora é comum ver um professor zapoteco dando aula em uma escola chatina, etc. Quanto aos movimentos de caráter laboral, a comunidade se ressente mas na verdade não sabe o que fazer a respeito, não sabe se é melhor os professores dedicar mais tempo às crianças ou deixar que elas permaneçam absorvendo conhecimentos que em longo prazo apenas individualizará seres comunitários, tornando-os competidores em vez de partilhadores. De certa maneira, podemos afirmar que o que as crianças aprendem na sala de aula, desaprendem na rua e em casa. Isso obviamente não ocorre nos níveis médio e superior. Esta dialética educativa de alguma maneira permitiu o ensino da partilha, mas, sem embargo, essa questão ficou muito complicada com a chegada dos meios massivos de comunicação.

Os princípios e valores que nos introduzem o radio, a televisão e os meios impressos são difíceis e quase impossíveis de deter. Novamente a falta de respeito às culturas regionais se convertem em uma clara expressão de discriminação. Não podemos afirmar que o Instituto Nacional Indigenista não tenha feito esforços neste terreno, ao contrário, aplaudimos aquilo que ele tem feito, mas tais feitos ainda são muito pequenos e desintegrados. A nação decidiu vender a liberdade para transmitir sinais, isso reafirma sua posição homogeneizadora, globalizadora e ratifica seu pouco interesse por uma nação plural rica em expressões culturais próprias e criadora de diversidade de modelos de vida que garantisse um futuro mais compartilhado.

Na atualidade, contamos em algumas regiões com emissoras, inclusive com centros de produção de vídeo. Mesmo com poucos recursos, a resistência nesse campo prossegue. Sem embargo, insistimos, não poderá haver democracia enquanto houver o impedimento de nossas sociedades exercitar sua própria liberdade de expressão, e tampouco poderemos derrotar nossos eternos inimigos que se fortalecem com o uso destes meios.

Em última instancia os meios estão aí, mais de fora para dentro que de dentro para fora. De qualquer modo nossa cultura não pode continuar sendo tratada como tem sido até agora. Estamos de acordo que este país tem uma raiz e que essa raiz somos nós. Sem embargo, pinta-la, conta-la, dança-la, teatraliza-la, e não trata-la e enfrenta-la faz dessa cultura uma caricatura e uma verdadeira vergonha para quem a observa e a comenta. A melhor forma de escrever nossa cultura não é em espanhol, nem tampouco a maneira perfeita de escrevê-la é em zapoteco. Nossa cultura é simplesmente nossa cultura. Não estamos no mercado das melhores palavras, ou dos melhores escritos. Estamos em nossa realidade e é essa que é nossa cultura. E o que desejamos é que nossa realidade seja contada para toda sociedade mexicana. Nossos médicos aprendem diariamente, no dia-a-dia. Não em uma temporada escolar, aprendem aos gritos, porque essa é a escola que sempre tivemos, a escola das eternas expressões. Mas o conhecimento que se obteve, como sempre, é deixado de lado, depreciado, discriminado, separado, o mesmo ocorre em todos os campos da inteligência. O resultado é que "não contribuímos". Mas continuaremos fazendo assim mesmo com nossa voz sufocada pelo ruído dos motores, dos programas de televisão, e das canções da moda.

Nossos direitos humanos no quinto dos infernos[]

A selvageria da sociedade nacional parece estar concentrada no exercício da lei. O estado dialoga conosco através de uma linguagem criptográfica, indecifrável e incompreensível. Por isso sempre saímos perdendo. Nem mesmo nossa dignidade conseguimos salvar. Os delitos na comunidade se resolvem praticando, comentando, analisando. A lei nos faz ver que as coisas não se praticam, não se executam, não se exerce, se ditam. Não importam as razões, o que importa é o estado de direito. Ou seja, a base de onde vem o ditame. Esta situação tem nos conduzido a lutas intermináveis que desgraçadamente não nos leva a nada. A não ser que entabulamos um diálogo de surdos. Não há pior discriminação do que a exercida pelo cumprimento de leis.

Neste campo há muito a ser dito. Para começar devemos afirmar que temos também nossas próprias leis. Lógicas de pensamento construídos por séculos, maneiras de entender a vida que nos conduz a resolver um sem número de problemas internos. Sem embargo, esse direito e esse conhecimento é violado pela imposição de arrazoamentos nascidos e desenvolvidos em âmbitos distintos dos nossos, em experiências que não partem de nossa realidade. Os centros de readaptação social não nos servem, pelo contrario, nos afetam. Sem embargo, lá estão os melhores exemplos do que essa sociedade desenvolveu. Sua existência nos envergonha, porque é a própria mutilação das nossas capacidades.

Em nossas comunidades enfrentamos um sem número de delitos, mas mesmo assim encontramos uma quantidade de soluções. Nossas leis são exercidas por quem compete exerce-las, não são gente especializada, são pessoas incumbidas de exercê-las temporariamente. Estamos convencidos de que mandar ao cárcere o assassino de um compadre é converter as comadres em duas viuvas, exatamente por isso, os castigos são ditados com base em considerações como essas, e não apenas com base em uma lei estabelecida sem diálogo.

O enfrentamento das leis "positivas" com as nossas não somente se dá no campo do ridículo, como ocorre quando não temos tradutor, mas na própria base dos princípios que se qualificam. Sempre se arrazoa em termos do direito individual, nunca se pensa no direito comunal, ou seja, sempre se arrazoa em termos dos interesses de um indivíduo e se entende que toda atitude acontece de um interesse individual, nunca se incorpora a possibilidade de entender que a atitude é resultado de um fato social ou mesmo comunal, o que implica em um tratamento distinto.

É por isso que os cárceres estão repletos de irmãos que, de lá de dentro, não conseguem compreender os delitos como seus, nem tampouco desenvolvem uma atitude comunal. O cárcere os individualiza e como tal os separa mais ainda da comunidade. É isso que o cárcere faz. Uma nova afronta à cultura dos povos indígenas.

Não queremos discutir se o cárcere funciona em uma sociedade mestiça ou urbana. Para ser mais preciso, sem embargo, cremos que na nossa sociedade o cárcere não funciona, por isso afirmamos nosso direito de imaginar que dentro desse tão propalado estado de direito, exista a possibilidade do exercício de diversas modalidades de justiça, e que este exercício seja realizado pelas distintas sociedades que compõem a sociedade mexicana.

A autonomia, livre autodeterminação ou autodeterminação, seria neste caso o marco jurídico mais adequado para concretar este tipo de liberdade. O estado mexicano não deve temer seus resultados, mas deve estar bem atento a seus frutos porque pode ser um exemplo de como conduzir uma sociedade complexa sem tanta papelada, porque aparentemente nossa sociedade nacional é baseada exclusivamente em cima de folhas de papel.

Nossos sonhos e a autonomia[]

Há pouco um intelectual perguntou se nós, indígenas, aceitaríamos uma autonomia subsidiada, ou seja, uma autonomia caricatural. Identificar autonomia com auto-suficiência é uma armadilha de discurso. É o clássico limite que um pai estabelece ao filho que quer decidir as coisas por si só. Nós não temos pai, a pátria foi criada para nossa desgraça. De donde saiu o recurso que formou esse intelectual? Elementar, do sangue de muitas gerações, não apenas de sua família. Das duas uma, ou ele não tem pai, ou tem uma sociedade que o sustenta, então essa sociedade somos todos nós. Porque não se pode subsidiar uma autonomia? Porque no final das contas todos nós seremos subsidiados.

Falácias como estas reforçam a idéia de que a sociedade mestiça persiste na crença de que nós, indígenas, deveríamos desaparecer.

Padecemos de uma permanente e sistemática discriminação. Uma discriminação defendida por notáveis inteligências. Não nos esquecemos o prêmio nobel que esse intelectual recebeu pela abordagem à luta de nossos irmãos chiapanecos.

A autonomia para nós é uma possibilidade de crescimento saudável, sim, mesmo que não acreditem nisso, livres de intermináveis contaminações, inclusive para que dessa maneira discriminemos à sociedade restante, não como fazem conosco, mas em um sentido construtivo, tratando-as como sociedades iguais, com os mesmos direitos e as mesmas obrigações. Por que nos tratam como crianças? Aqui não se trata de uma família, trata-se da historia de sociedades que se relacionam, se enfrentam e obtém como resultado um novo estado social e econômico. Que nosso reclamo não seja compreendido como um gemido, um choramingo, porque não somos crianças que escrevem a um adulto para que resolvam as coisas para nós, estamos falando de adulto para adulto para que nossas ralações sejam mais construtivas.

Não compreender o profundo sentido de nosso reclamo autônomo é não compreender nosso afã democrático, é empenhar-se na necessária exterminação de nossos povos, é crer que o futuro da humanidade é o futuro de nossos vizinhos do norte, é crer que não temos nossa própria origem e nação, é atirar no lixo o sangue de tantas gerações que nos forjaram, é não semear para o futuro, um futuro que é nosso e que querem destruir.

A discriminação começa pela incompreensão do valor de nosso território, da invalidação de nossa racionalidade econômica, assim como da inconformidade sobre nossa organização social e da falta de respeito a nosso direito de exercer a justiça. Tudo isso é discriminação e reafirmamos nossa convicção de que não haverá democracia se a sociedade nacional não compreender a diferença, a pluralidade e o direito que nós, os povos indígenas, temos de desenhar nosso próprio futuro.

Guelatao de Juárez, Oax., em 30 de maio de 1994


Comunalismo e Autonomia
Declaração dos povos serranos zapotecos e chinantecos da Sierra Norte de Oaxaca Discriminação e democracia em estado multiétnico Comunalismo e autoritarismo
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