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Alegria Armada
Alfredo M. Bonanno


«"Homens, se não conseguem alcançar o que lhes é necessidade se cansam com futilidade.»
(Goethe)


Os humanos precisam de coisas.

Tal "constatação" geralmente serve para dizer que humanos possuem necessidades as quais é obrigado a satisfazer.

Dessa forma, as pessoas são transformadas de unidades historicamente determinadas à uma dualidade (meio e fim simultaneamente). Eles percebem a si mesmos através da satisfação de suas necessidades (i.e. através do trabalho), tornam-se, portanto, o instrumento de sua própria realização.

Qualquer um pode ver o quanto de mitologia está disfarçada em "constatações" como esta. Se o homem distingue a si mesmo da natureza através do trabalho, como ele pode ser pleno na satisfação de suas necessidades? Para alcançá-la seria ele ainda um homem, capaz de saciar suas necessidades, significaria para ele não ter que trabalhar.

As mercadorias possuem um conteúdo profundamente simbólico. Elas tornam-se um ponto de referência, uma unidade de medida, um valor de troca. Começa o espetáculo. Os papéis são distribuídos e reproduzem eles próprios até o infinito. Os atores continuam a desempenhar seus papéis sem quaisquer modificações particulares.

A satisfação das necessidades torna-se nada mais do que um reflexo, um efeito marginal. O que importa é a transformação das pessoas em “coisas”, e com elas tudo mais também. A natureza se torna uma “coisa”. Usada, ela é corrompida, assim como os instintos vitais dos humanos. Um abismo se abre entre a natureza e os homens. Ele deve ser preenchido, e a expansão do mercado deseja preenchê-lo. O espetáculo se expande ao ponto de devorar ele próprio e até mesmo suas contradições. Palco e plateia encontram-se na mesma dimensão, ambicionando para eles mesmos um nível mais elevado, mais distante, do mesmo espetáculo, daí em diante até o infinito.

Qualquer um que escape do código da mercadoria não se torna objetificado e desaba “fora” da área do espetáculo. Eles são apontados. São cercados por arame farpado. Se recusarem ao englobamento ou uma forma alternativa de codificação, são criminalizados. Obviamente só podem estar loucos! É proibido recusar o ilusório em um mundo que baseia a realidade na ilusão, o concreto no irreal.

O Capital gerencia o espetáculo de acordo com as leis da acumulação. Mas nada pode ser acumulado ao infinito. Nem mesmo o capital. Um processo quantitativo em absoluto é uma ilusão, uma ilusão quantitativa, para ser preciso. Os patrões percebem isto perfeitamente. A exploração adota diferentes formas e modelos ideológicos exatamente para assegurar esta acumulação em modos qualitativos, uma vez que não pode continuar no campo quantitativo indefinidamente.

O fato de que todo o processo se torna paradoxal e ilusório não interessa muito ao capital, porque é precisamente isso que segura as rédeas e faz as regras. Se precisar vender ilusão por realidade e isso gera dinheiro, então poderemos fazê-lo sem sombra de dúvida. São os explorados que pagam as contas. Por isso cabe a eles encarar a farsa e preocupar-se reconhecer o que é a realidade. Para o capital as coisas estão bem como estão, mesmo estando elas construídas sobre o maior espetáculo de negação do mundo.

Os explorados quase sentem saudades desta fraude. Foram criados acostumados as suas correntes e passaram a estar ligados a elas. Por vezes fantasiam com levantes fascinantes e banhos de sangue, logo depois se deixam levar pelos discursos dos novos líderes políticos. O partido revolucionário estende a perspectiva ilusória do capital até horizontes que nunca poderia ter alcançado sozinho. A ilusão quantitativa se espalha.

Os explorados se juntam, contam a si próprios, esboçam suas conclusões. Palavras de ordem ferozes fazem os corações burgueses palpitar. Quanto maior o número, mais os líderes de forma arrogante se impõem e mais exigentes eles se tornam. Delineiam grandes agendas para a conquista do poder. Este novo poder prepara-se para se espalhar sobre os restos do velho. O fantasma de Bonaparte sorri de satisfação.

É claro, mudanças profundas estão sendo programadas no código das ilusões. Mas tudo deve ser submetido ao símbolo da acumulação quantitativa. As exigências da revolução aumentam a medida que as forças militantes crescem. Da mesma forma a taxa do lucro social que está tomando o lugar do lucro privado precisa crescer. Então o capital entra numa nova e ilusória fase espetacular. Velhas necessidades insistentemente pressionam os novos rótulos. O deus da produtividade continua a reinar, sem concorrência.

Como é bom contar a nós mesmos. Nos faz sentir fortes. Os sindicatos contam a si próprios. Os partidos contam a si próprios. Os patrões contam a si próprios. Assim como nós. Como pétalas de rosas. E quando paramos de contar tentamos assegurar que as coisas ficam como estão. Se a mudança não puder ser evitada, iremos trazê-la sem perturbar ninguém. Os fantasmas são facilmente acordados. De tempos em tempos a política toma a dianteira. O capital muitas vezes inventa soluções geniais. Então a paz social nos atinge. O silêncio do cemitério. A ilusão se espalha de tal maneira que o espetáculo absorve quase todas as forças disponíveis. Nem um som. Então os defeitos e a monotonia da mise en scène (preparação do cenário). A cortina ergue-se em situações imprevistas. A máquina capitalista começa a vacilar. O envolvimento revolucionário é redescoberto. Aconteceu em ’68. Os olhos de todos quase saltaram as órbitas. Toda a gente extremamente feroz. Folhetos em todo o lado. Montanhas de folhetos e panfletos e jornais e livros. Velhas diferenças ideológicas alinhadas como soldados em lata. Até os anarquistas se redescobriram. E fizeramno historicamente, de acordo com as necessidades do momento. Toda a gente estava com o espírito bastante estúpido. os anarquistas também. Algumas pessoas acordaram do seu repouso espetacular e, procurando por espaço e ar para respirar, vendo anarquistas, disseram a si mesmas, “pelo menos estam aqui as pessoas com quem eu quero estar”. Cedo perceberam seu erro. As coisas não correram como deviam também nessa direção. Nisso, também, estupidez e espetáculo. E por isso elas fugiram. Fecharam-se em si mesmas. Despedaçaram-se. Aceitaram o jogo do capital. E se não aceitassem eram banidas, mesmo pelos anarquistas. A máquina de ’68 produziu os melhores servos civis do Estado novo-tecnológico-sem-burocracia.

Mas produziu também os seus anticorpos. O processo de ilusão quantitativa passou a ser evidente. Por um lado recebeu sangue fresco para construir uma nova visão do espetáculo mercantil, no outro houve uma falha. Tornou-se ruidosamente óbvio que o confronto ao nível da produção é ineficaz. Tomem as fábricas, e os campos, e as escolas, e os bairros e auto-gestionem-os, proclamavam os antigos anarquistas revolucionários. Destruiremos o poder em todas as suas formas, acrescentaram. Mas sem chegar às raízes do problema. Embora conscientes da sua gravidade e extensão, preferiam ignorá-lo, soprando as suas esperanças na espontaneidade criativa da revolução. Mas entretanto queriam manter o controle da produção. O que quer que aconteça, quaisquer que sejam as formas criativas que a revolução possa expressar, nós devemos tomar os meios de produção, insistiam eles. Caso contrário, o inimigo irá nos derrotar nesse nível. Portanto começaram a aceitar todos os tipos de compromisso. Acabaram criando outro, ainda mais macabro, espetáculo. E a ilusão espetacular tem as suas próprias regras. Qualquer pessoa que a queira dirigir tem que as suportar. Devem conhecer e aplicá-las, jurar por elas. A primeira é que a produção afeta tudo. Se tu não produzes não és humano, a revolução não é para ti. Por que devíamos nós tolerar parasitas? Devíamos ir para o trabalho em vez deles, talvez? Devíamos olhar para o seu modo de vida assim como para o nosso? Além disso, não iriam todas estas pessoas com idéias vagas e a reclamação de fazerem o que bem entenderem tornarem-se “objetivamente” úteis para a contra-revolução? Bem, nesse caso é melhor atacálas imediatamente. Nós sabemos quem são os nossos aliados, quem queremos ao nosso lado. Se queremos assustar, então vamos fazê-lo todos juntos; organizados e em perfeita ordem; e que ninguém ponha os pés em cima da mesa ou deixe as calças em baixo. Vamos organizar as nossas organizações específicas. Treinar militantes que sabem as técnicas de luta no lugar de produção. Os produtores farão a revolução, nós apenas estaremos lá para nos certificarmos que não fazem nenhum disparate. Não, está tudo errado. Como seremos capazes de evitar que cometam erros? No nível espetacular de organização há alguns capazes de fazer bem mais barulho do que nós. E eles têm de poupar fôlego. Luta no local de trabalho. Luta pela defesa de empregos. Luta pela produção. Quando sairemos nós deste círculo? Quando pararemos nós de morder as nossas caudas?


Alegria Armada
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