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Janos Biro


Acorrentados

1. Onde começa a nossa história? Na escola geralmente aprendemos que nossa história começa no crescente fértil, com a “descoberta” da agricultura, o que permitiu ao “homem” se estabelecer num lugar fixo, desenvolver tecnologia “avançada”; inventar a linguagem escrita, progredir suas técnicas comerciais e progredir em todos os sentidos. Mas a agricultura não foi descoberta pelos seres humanos, ela foi inventada por um grupo de seres humanos. Ela representa o começo da nossa história porque ela permitiu que esse grupo controlasse sua provisão de comida. E quem somos nós senão herdeiros deste grupo de pessoas que inventaram uma forma de se livrar do ciclo natural de provisão de comida que todos os outros humanos seguiam até então e continuaram seguindo em todas as outras partes do mundo? Nossa história não é a história da humanidade, é a história de um povo que tinha uma visão de mundo que se opunha a tudo que houve antes: acreditavam que necessitavam de mais do que a natureza estava provendo. Eles queriam mais do que a vida estava oferecendo, e iriam se esforçar ao máximo para conseguir isso, custe o que custar.


2. Com surge nossa agricultura? Não foi um acontecimento que atingiu todos os seres humanos ao mesmo tempo. Ela se iniciou em grupos específicos de seres humanos, e depois tentou se espalhar pelo mundo. De todos os povos que inventaram a agricultura, nós fomos os únicos que não entraram em colapso, ainda. Nossa agricultura é mais do que plantar, é plantar cada vez mais. Ela é expansiva porque é um sistema de auto-regulação unilateral. O aumento da produção de comida gera o aumento da população, o que exige o aumento da quantidade de terra cultivada, o que por sua vez gera mais crescimento populacional, e assim por diante. É um ciclo sem fim, é uma função exponencial. Outros povos vivam no crescente fértil, povos que ainda eram nômades. Com o passar do tempo eles desapareceram. O que aconteceu com eles? Nós não podíamos deixar os outros povos entrarem nas “nossas” terras e comerem o fruto do “nosso” trabalho. Então o que fizemos com os povos nômades do crescente fértil? Provavelmente, o mesmo que fizemos com todas as culturas não civilizadas que encontramos pela frente. Dissemos: “Junte-se a nós ou morra”.


3. A agricultura não é simplesmente uma técnica do cultivo da terra, é um modo de vida específico, que exige uma visão de mundo específica. O modo de vida que a agricultura expansiva exige é extremamente trabalhoso, necessita de organização cada vez mais complexa e divisão de trabalho cada vez mais desigual, por isso ele gera idéias culturais que valorizam o trabalho, a eficiência, o desenvolvimento científico, o progresso tecnológico, o status social e o crescimento acelerado da produção e do consumo. A origem da palavra geometria é medição de terra. A mesma geometria que foi cultuada como um deus pelos sábios gregos. Nosso modo de vida foi assimilando ou destruindo os outros modos de vida como forma de garantir sua própria sobrevivência. Cada grupo humano tem um modo de vida próprio, que não serve para outro grupo, porque foi resultado de milhares de anos de tentativa e erro. O nosso modo de vida, ao contrário, é considerado universal. Acreditamos que todas as pessoas do mundo devem viver deste modo, e que qualquer outro modo está equivocado.


4. Na nossa história, a agricultura expansiva é identificada como o despertar do homem, e até meados do século XIX todos os pensadores tinham como certeza indubitável que o homem é inseparável do modo de vida da agricultura expansiva, dizendo que esta técnica era apenas a evolução natural das técnicas de coleta de alimentos. Eles tinham certeza que o homem nasceu para criar cidades e impérios, e que a evolução do homem estava intrinsecamente ligada ao progresso da tecnologia, das leis e do comércio. “O homem é um animal político”, disse Aristóteles. As fundações do nosso pensamento foram feitas por pessoas que acreditavam nisso, que o homem é um ser civilizado, que a civilização é o seu verdadeiro habitat. Para eles, fazia muito sentido dizer que a criação da humanidade coincide com a criação da agricultura expansiva, e era isso que acreditavam. Até hoje algumas pessoas ainda acreditam nisso, dizendo que o homem tem no máximo seis mil anos.


5. Hoje em dia se tornou indefensável a idéia de que o homem nasceu para a civilização. A nossa própria ciência nos permite afirmar que o homem não tem no máximo dez milhares de anos, mas pelo menos cem mil anos. Isto deveria ter sido um choque. Se o homem não havia surgido com a agricultura expansiva, o que ele fez este tempo todo? Para nossos teóricos, ele não fez nada de bom. Ao invés de abalar a estrutura das nossas concepções sobre o homem, simplesmente chamamos a nossa história de história do homem, e o resto de pré-história. Os outros povos, com seus modos de vida distintos do nosso, seriam nada mais do que coadjuvantes na história do homem, nossa história. Os fundamentos da nossa cultura foram criados por pessoas que tinham idéias equivocadas sobre a origem da humanidade, mas não nos importamos com isso, e assim continuamos até hoje a chamar a nossa história de “história do homem”, ignorando qualquer valor em todas as outras formas de viver que existiram antes e que existem até hoje.


6. Então a nossa história não é a história da humanidade. A história da humanidade começa há cem mil anos atrás, e a nossa história começa há apenas dez mil. A nossa história representa apenas 10% do tempo em que os seres humanos viveram na Terra. Nosso modo de vida de agricultura expansiva não foi o primeiro, não é o único e não será necessariamente o último. Se isto é verdade, então os pensadores estavam errados ao afirmar que a nossa história representa o avanço universal do homem. Este é o primeiro passo para entender o nosso problema.


7. Quando se tornou óbvio que o desenvolvimento da civilização não apontava exatamente para a melhoria da vida de todas as pessoas, os pensadores se viram pressionados a explicar porque a miséria e a desigualdade que cresciam. Eles procuraram respostas não no modo de vida civilizado, mas sim nas próprias pessoas que de alguma forma não se “adaptavam” à civilização. Isto os levou a crer que é natureza do homem que o leva aos problemas sociais. Outros acreditavam que a estabilidade encontrada entre os povos com outros modos de vida acontecia por causa de uma “nobreza natural”, ou seja, eles estavam num estado de inocência que nós perdemos algum tempo no passado, por isso estaríamos condenados à miséria. Discordo exatamente no que ponto em que todos eles concordavam, pois eles ainda identificavam o nosso modo de vida como algo ao qual estamos destinados. “O homem é o lobo do homem”, disse Hobbes. Para muitos de nós ainda hoje, o problema reside na natureza humana.


8. Se nosso problema é natural ou necessário, significa que aqueles que não o apresentem são essencialmente diferente de nós, e ainda estão em processo de se tornar como nós. Isto significa que, não importa o caso, a evolução natural leva todos os homens a um ponto de convergência necessário. Significa também que, se desejarmos evoluir além deste ponto, os fundamentos do nosso modo de vida devem permanecer os mesmos, pois estão intrinsecamente ligados a nós. É impossível descartar estes fundamentos, por pior que seja o resultado. Por exemplo, se eles nos levam inexoravelmente à extinção, então a extinção é o destino inevitável da humanidade, e ponto final. Não encontramos, entre todos os outros tipos de conhecimento humano, nada que seja parecido com isso. Até a geometria ou a aritmética podem ter seus fundamentos criticados, e tiveram, mas o nosso modo vida é tão definitivo e indubitável quanto o “penso, logo existo” era para Descartes.


9. Mas até o “penso, logo existo” de Descartes pode ser criticado, e foi. E o que significa criticar os nossos fundamentos? Porque haveria necessidade de fazer isso? As causas de nossos problemas existem em qualquer modo de vida, mas somente no nosso modo de vida as conseqüências são completamente desastrosas. As causas dos nossos problemas estão ligadas ao nosso egoísmo, inveja, ganância, violência, mentira e tudo o mais. Porém, nosso modo de vida cria meios aonde essas coisas podem proliferar de forma tão extraordinária que suas conseqüências são extremamente preocupantes, de forma que algo que deve ser sanado para que a vida continue normalmente. Isto só atinge essas proporções no nosso modo de vida, em qualquer outro são problemas banais. Sabemos que é impossível eliminar as causas naturais, por isso tendemos a aliviar seus efeitos com leis, educação, policiamento... Mas não importa o quanto investimos na formação moral e intelectual de nossos cidadãos, os problemas não diminuem. Algo não está dando certo.


10. A agricultura expansiva nos livrou do ciclo natural de provisão de comida, e nos tornou responsáveis por nosso próprio suprimento de comida. Isto significa que de agora em diante, diferente dos outros animais, ficamos inteiramente responsáveis também pela nossa proliferação no globo, pela nossa expansão em números. Nossa população cresceu tão extraordinariamente nos últimos 10% da história humana que os demógrafos chamam isso de curva J, porque realmente tem forma de J. O que aconteceu a partir daí não foi uma simples mudança natural, foi uma mudança nas concepções de humanidade e de natureza. A criação de um modo de vida insustentável. Não mais nos submetemos à natureza, mas agora tentamos tomar controle dela. Controlar a natureza, aumentar a produção, proliferar em números... Estes passaram a ser nossos fundamentos.


11. Superpopulação não é um mero problema de espaço. Aldous Huxley identificou a origem de nossos problemas sociais no fato de haver cada vez mais gente no mundo, pois as necessidades se tornam cada vez maiores. Mas como a superpopulação acontece? Assim como em todas as espécies, a população humana é limitada não pelo número de filhos que somos capazes de fazer, mas pelo número de filhos que somos capazes de alimentar, obviamente. Porém, desde que tomamos controle da nossa produção de comida, não fizemos nada que não fosse aumentá-la cada vez mais, e não mostramos tendência para diminuir esta produção. E enquanto a produção de comida aumentar, nossa população vai aumentar. Mesmo que a produção tenha que, por algum motivo, se estabilizar ou diminuir, e mesmo que fossemos capazes de diminuir o consumo e controlar a população, não seremos capazes de conter a crise econômica proveniente disto. Isto porque nossa economia está fundamentada na necessidade de crescer aceleradamente. Se o consumo cai, a crise aumenta.


Por que aumentar a produção não resolve à fome? Aumentar a produção é exatamente o que gera a fome. Quando o acúmulo aumenta, a população aumenta. Quando os recursos locais se esgotam, a população é obrigada a procurar comida em outros lugares. Quando não há acesso a mais comida, por qualquer que seja o motivo, a fome é criada. Se os recursos locais não se esgotam, não há fome, e se não há agricultura expansiva, os recursos não tem como se esgotar, porque sempre se pode mudar de região, mas com o nosso modo de vida esta opção não existe. Só podemos expandir, e quando não houver mais para onde expandir, vamos entrar em colapso repentino e catastrófico.


12. Nossa economia é como uma pirâmide de dinheiro. Ela não pode parar de crescer, por isso exige que cada vez mais capital circule, cada vez mais rápido. Cada vez que plantamos um campo para nos alimentar, tiramos da terra uma parte de sua energia. Se tirarmos da terra mais energia do que ela é capaz de regenerar, será uma questão de tempo até que o planeta se esgote. O fundamento da economia, que é o nosso fundamento, contradiz esta lei natural. Acreditamos erroneamente que salvar a terra é uma questão de “preservação”. Mas nem toda preservação do mundo muda o fato de que a economia precisa crescer aceleradamente, e que os recursos são finitos, e que mesmo que reciclássemos 100% do que consumimos, ainda haveria perda de energia no processo. É impossível ser sustentável com o atual modelo econômico, e é impossível que a humanidade sobreviva sem sustentabilidade.


13. Há dez mil anos atrás um grupo de seres humanos se livrou da restrição natural da provisão de comida, seguida por todos os outros animais, criando um modo de vida que, diferente dos outros, tem fundamentos supostamente universais. Este modo de vida se fundamenta em aumentar aceleradamente a produção através do trabalho humano. Graças a esse fundamento, pudemos desenvolver tecnologias, mas criamos também a miséria e a desigualdade. Isto aconteceu porque valorizamos somente os frutos do nosso trabalho, criamos a possibilidade de redistribuir os bens de forma desigual, e esta possibilidade foi explorada por algumas pessoas com os meios apropriados. Então, nosso problema não é o fato de que somos humanos, mas o fato de que criamos um modo de vida que possibilita e potencializa o desequilíbrio, devido aos seus fundamentos insustentáveis. E ainda assim acreditamos que este modo de vida deve ser levado até o fim a qualquer custo, que não há nada que possa superá-lo ou substituí-lo.


14. Devido à profundidade com que as crenças do nosso modo de vida estão enraizadas nas mentes de qualquer pessoa, é muito comum distorcer e tirar conclusões errôneas sobre o que foi exposto. Eis as principais coisas que eu NÃO estou dizendo: a humanidade destrói a Terra, a agricultura é má, precisamos voltar para as cavernas, os tribais são pessoas melhores... O que eu disse é que nosso modo de vida está mal adaptado ao meio e a nós mesmos e não funciona para nossa subsistência em longo prazo. A nossa agricultura está destinada ao colapso porque é expansiva, não é uma questão de ser ecológica ou politicamente correta. Podemos voltar a um modo de cooperação com a comunidade da vida ao invés de priorizar o aumento da produção e do consumo de bens. Os povos não civilizados têm modos de vida realmente sustentáveis, e não se trata de imitar seus modos de vida. Tão pouco a diferença residiria na nossa natureza, na nossa mente ou nas nossas virtudes. Um novo modo de vida pode ser criado a partir de agora, se quisermos que a humanidade sobreviva ou viva com melhor qualidade. Estas idéias, com mais detalhes, são encontradas em vários livros. Confira a lista de referências na última página ou visite o site para uma lista completa. O diálogo está aberto.



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