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Guilherme Falleiros


A palavra "experimental" pode, de vez em quando, causar uma certa repulsa àqueles avessos ao pedantismo e à cultura refinada. Porque, além de ser uma palavra difícil, ela remete a tentativas artísticas rebuscadas e distantes dos moldes simplificados da cultura de massa.

Acontece que ela se refere justamente a uma crítica aos moldes da cultura refinada, dos padrões acadêmicos, das regras pré-estabelecidas. Talvez o problema seja porque quem a usa mais sejam aqueles que já tiveram um contato com a cultura refinada e visam superá-la, estando numa relação com ela diferente de quem simplesmente não teve acesso a ela.

O lado positivo que fica, ainda assim, é que o experimental é algo que, como o nome indica, está disposto a romper com a teoria, a voltar à prática, senão a refazer as relações entre prática e teoria, talvez desgastadas por um longo trajeto de distanciamento.

Tendo ou não tendo um contato prévio com a cultura “culta”, com uma longa tradição de textos, com um saber estabelecido, o experimentalismo busca deixar de lado, colocar entre aspas ou entre parênteses, o que “já se sabe” e partir para formas de contato mais direto (mas não menos intermediado por símbolos) com o outro que ele experimenta, seja esse “outro” o mundo, outras pessoas, as plantas, a música, a culinária etc.

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A Antropologia contemporânea é marcada por esse experimentalismo no que concerne seu foco no “trabalho de campo”, o rito de passagem de qualquer antropólogo que se prese, mesmo apesar de todo o academicismo da disciplina, livresco, especialista e burocrático; e apesar de todas as suas teorias (que fazem da Antropologia hoje, para muitos, a nova Filosofia).

Tenho estado bastante intrigado, ultimamente, sobre as relações possíveis entre Antropologia e anarquia, às vezes até um pouco cético. Não encontro muitos antropólogos dispostos a levar a sério essas relações e suas conseqüências para a própria vida (porém ciosos demais do valor da noção de “hierarquia”, palavra muito mal-compreendida, muitas vezes justificando-se um de seus sentidos – o do mando e obediência, o do autoritarismo – a partir de outros – como o de englobamento ou o de preferência), ainda que isso esteja mudando, como mostra o tímido porém crescente interesse por acadêmicos anarquistas como David Graeber, Jesus Sepúlveda e outros. Do outro lado, encontro anarquistas alimentados por uma antropologia naturalista, que aprisiona grande parte da teoria anarquista no século XIX – ainda que alguns tratem o “primitivismo” como algo do “futuro” – pouco dispostos a questionarem suas noções burguesas de indivíduo (aquele a quem pretendem “libertar”) ou parentesco (algo “superado”, “pernicioso” até, que “deve” ser eliminado com a revolução, quando todos serão de todos e ninguém de ninguém).

Mas me parece que há outro ponto de contato importante entre antropologia e anarquia: o experimentalismo.

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O experimentalismo é anárquico porque não aceita nenhuma regra prévia a si mesmo. Ou, melhor, ele não ignora a existência de regras anteriores, mas procura questioná-las – ainda que ele mesmo possa ser uma regra em si, uma regra de conduta, a “conduta experimental”.

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Nem toda forma de agir libertária é essencialmente experimentalista. Muitos anarquistas seguem manuais de conduta política estabelecidos já há um par de séculos, e são alimentados por experiências históricas de longa duração, dentro de organizações centenárias. Não há mal algum nessas formas de tradição e transmissão da experiência anarquista através das gerações. Isso deve ser mesmo louvado, quando serve como luta contra o que Walter Benjamin detectou como a derrocada das narrativas e das formas de transmissão da experiência de uma pessoa para a outra, seja no tempo (história oral, tradição), seja no espaço (relatos de viagens).

O problema é quando esses manuais de conduta se tornam autônomos e perdem seu diálogo com a experiência nova, tornando-se dogmáticos. Afinal, toda tradição é também um diálogo com o presente, uma transmissão mudada a partir da relação entre as gerações. A tradição, quando se torna via de mão única, tende ao esquecimento ou à morte em vida.

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Pois existe hoje um tipo de anarquismo que tem retomado esse diálogo, ainda que muitas vezes na forma de bate-boca, que é um anarquismo surgido em meio aos pobres de experiência política prévia, aos pobres de experiência histórica dentro do movimento libertário, a partir de lampejos juvenis de rebeldia ligados ao movimento punk e ao “faça você mesmo”.

O punk é por definição alguém que resolveu renegar a cultura refinada (à qual teve pouco acesso ou à qual recusou por lhe parecer forçada, massante ou desigualitária) e mostrar ser possível produzir algo a partir do mínimo possível de conhecimento, lidando diretamente com os instrumentos de criação. Ele aprende fazendo, errando, muitas vezes fazendo feio e sujo.

É claro que o “movimento punk” acabou, de alguma forma, esquecendo-se de seu princípio experimental e se atrelando a regras tradicionais.

Mas, como eu disse, não há nada de errado com isso!

O problema não é a tradição em si, e sim a incapacidade de fazer a tradição dialogar.

O que importa é que essa característica original do punk, a “pobreza de experiência”, acabou se tornando, como diria Walter Benjamin outra vez, uma “experiência da pobreza”: uma capacidade de descobrir muito a partir de pouco, de criar a partir do lixo, de reciclar, de transformar o que era dejeto em adubo.

O anarquismo que nasce daí é fortemente voltado para a prática, mais para o fazer concreto do que para a teoria, ainda que esse experimentalismo precise fazer referência às teorias existentes – muito mais para testá-las do que para obedecê-las.

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Um dos rituais desse experimentalismo libertário – e digo “ritual” também para expressar que seu "cotidiano" não se resume a isso – é o da “Música Livre”.

A “Música Livre” é uma prática que tem crescido nos meios ativistas, autogestionários, ecológicos, nas ocupações urbanas autonomistas, entre os nômades internacionalistas (por causa deles não sei localizá-la geograficamente: já presenciei gente do Peru, da Argentina, obviamente do Brasil... e tudo indica que também seja “velha” conhecida do “Primeiro Mundo”), entre os experimentadores da liberdade somática ou simplesmente na produção artística engajada. Apesar da sugestão implícita, esse tipo de música não se confunde tanto com o jazz ou com o improviso dotado de técnica trabalhada e conhecimento teórico musical.

Ligada a egressos do punk afeitos à raiz de seu movimento, é um tipo de música que se faz por tentativa e erro, com retroalimentações repetitivas em busca de um diálogo, em busca de acertos através da adaptação do que um toca em relação ao que o outro toca.

É claro que o jazz também faz isso, mas faz a partir de muito estudo e num nível técnico muito mais elevado, enquanto que na música livre acaba surgindo uma circularidade repetitiva típica da música popular, mas também sempre em avanço diaĺógico – um movimento espiralado.

Hoje, em São Paulo, tem até hora e local onde pessoas munidas de qualquer instrumento musical (geralmente acústico) se reúnem para tocar – o vão livre de um famoso museu na Avenida Paulista (palco de várias manifestações de protesto da última década).

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Talvez o momento atual do anarquismo brasileiro seja um tempo em que esses dois pólos extremos – o experimental daqueles que não tiveram uma história anarquista prévia; e o clássico, daqueles já vinculados a antigas organizações sobreviventes do anarcossindicalismo, dos centros de cultura social etc., presentes em pouquíssimas capitais metropolitanas do Sul, do Sudeste e do Nordeste, orientados por princípios mais classistas – estejam fortes o bastante para dialogarem de um lado e baterem boca de outro.

Às vezes a velha experiência e a nova tem conseguido caminhar juntas, não sem atrito. Noutras, os novos e inexperientes, inseguros de tentarem, acabam indo buscar propostas cristalizadas e dogmáticas. E, noutras vezes, experimentam o experimentalismo com tanto vigor que podem acabar menosprezando a sabedoria tradicional.

A questão é que essas duas tendências do anarquismo não podem se ignorar (ou devem deixar de se ignorar), sob o risco de esterilidade mútua.

Ainda que, dado seu caráter mais vivaz, o experimentalismo acabe encontrando outras formas de se (re)produzir, buscando tradições fora do corpo teórico institucionalizado do anarquismo (quando vai atrás de outras “ciências”, como as teorias da informação, a biologia do conhecer, a agroecologia, a permacultura, o taoismo, as filosofias e as ciências humanas como a antropologia), às vezes ele sente falta de experimentar um pouco o passado e de fazer testes de “DNA” relendo os clássicos. Mesmo que seja para “brigar” com eles, mas “brigar” de maneira honesta, dialógica.

Se experimentar é questionar regras, é fazer regras a partir da relação concreta, então isso também vale em relação a experimentar o passado.

E o experimentalismo de hoje acabará se tornando a sabedoria de amanhã. É justamente essa a experiência capaz de perdurar, de se transmitir tanto quanto de se transformar.


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