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PRIMEIRA PARTE
Manual de Contra-História na Antimodernidade
Eduardo Antonio Bonzatto


«...ninguém viveu no passado, ninguém viverá no futuro; o presente é a forma de toda a vida.»
(Schopenhauer)


«Não há nada mais equivocado do que tentar entender o espírito de uma época.»
(Sérgio Buarque de Holanda)


Embora vivamos num tempo pleno de incertezas, em que o fragmentário se impõe sobre a coerência, em que o subjetivo é muito mais que mera perspectiva, no conceito do anacronismo ainda viceja o cientificismo típico do século XIX e, a despeito de ser completamente inadequado para entender a contemporaneidade, devido ao caráter inercial das instituições vitalizadas por este, continua tão reconhecidamente válido quanto há 100 anos.

As implicações da frase de Schopenhauer para o estudo do anacronismo ultrapassam a melancolia que subjaz como um imperativo à sua experimentação e à sua contingência.

Se, para aqueles todos que podem fruir livremente a dinâmica dessa “presentificação”, esse determinismo é muitas vezes irrelevante, para o historiador constitui o pecado mais ignominioso, o tabu a ser evitado a qualquer custo.

Recordo-me vagamente de uma frase que de alguma forma complementa esta, embora ignore seu autor: “quando a gente pensa que já sabe todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas”. Eis aí, novamente, nosso constrangimento mais assustador e sobre o qual devemos nos posicionar com a clarividência possível e o espírito das letras tanto quanto.

Em recente prefácio à obra de Lucien Febvre , Hilário Franco Jr. reconhece que “escrever história é sempre exercício de anacronia” e que, portanto, “o anacronismo não deve, todavia, pensam muitos estudiosos hoje em dia, ser diabolizado”. Afinal, o fazer historiográfico consiste em

mesclar consciente ou inconscientemente elementos do presente e do passado. Prova-o até mesmo o elemento básico do discurso do historiador, o vocabulário. Ao longo do tempo as palavras, ainda que sob a mesma forma, vão recobrindo novas realidades, ganhando outras acepções. Substituir em passagens mais difíceis a fala do historiador pela da época estudada não significa necessariamente evitar a armadilha do anacronismo: ao lermos a citação de um filósofo grego, de um cronista medieval ou de um literato moderno, atribuímos às suas palavras sentidos que com freqüência não correspondem ao entendimento que delas tinham os contemporâneos .

Contudo, essa compreensão não está isenta de trabalho. É disparadora de profundas revisões historiográficas e, principalmente, do comprometimento dos historiadores contemporâneos que ignoram as repercussões, sobre o passado, de tal vaticínio. Pois tudo tem de ser revisto, revisitado e indagado sob essa perspectiva. Sua própria gênese deve ser rastreada e os fundamentos políticos que constrangeram e ainda constrangem os historiadores devem ser explicitados.

Matt Ridley nos lembra que o homem do gelo, recentemente encontrado nos Alpes, dispunha de mais tecnologia do que os homens que o encontraram (Ridley, 2000). Diante dessa constatação, pergunto como é possível produzir alguma empatia com um tempo que, sob todos os aspectos, julgamos em desvantagem perante o nosso? Há alguns anos foi encontrado na China um homem perfeitamente preservado numa mina de sal: era um escocês do séc. III antes de Cristo; grandes mineiros de sal por séculos, este homem trajava calças compridas de brim e camisa xadrez vermelha, preciosamente conservados numa mina de sal chinesa (Kurlansky, 2004).

Não posso deixar de lembrar do estranho hedonista Paracelso. Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus (1493-1541), vulgo Paracelso, fora um beberrão que gostava de aprender com mendigos, feiticeiros e ladrões. Como “médico”, criou uma receita para se produzir um homúnculo. Recomendava ele a mistura de um pouco de sêmen humano que deveria ser enterrado com esterco de cavalo, passando um imã após o enterramento. Em pouco tempo aparecia um homenzinho de uns 12 cm de altura pronunciando o seguinte versinho: “venho pairando/na mais plena acepção do termo/querendo ver quebrada/minha vítrea prisão” .

Mas se aqui pode-se entrever algo do jocoso típico de nossa incredulidade, a seguir temos a referência de que talvez, talvez ali não esteja vibrando um engodo.

No ano de 1955 na Floresta Negra e em 1973 na Bretanha, arqueólogos encontraram ossadas conhecidas a partir de então como animal de Tollund. Sua ossada, para surpresa dos estudiosos, deixava entrever em seus enormes caninos símbolos inscritos em baixo relevo, como esculpidos com objetos cortantes e pontudos. Distante duzentos metros dos enterramentos encontraram formas cilíndricas que a princípio pareciam fornos, mas que se revelaram casas aparelhadas para abrigarem esses seres extravagantes e pequenos. Datadas pelo método do carbono 14, tais vestígios indicaram o século XIV como a data mais aproximada da morte desses estranhos seres: na Europa do séc. XIV seres minúsculos produziam símbolos e construíam casas, bem no coração da Bretanha e da Floresta Negra.

Mas desde 1937 o arqueólogo Karl Heinrich Rubinstein descrevia o estranho achado nesses termos:

(...) à primeira vista primata ou lemuriano de uma raça desconhecida, é impossível classificá-lo numa destas famílias. O pequeno ser mede, em pé, 52 cm, e parece deslocar-se verticalmente. O corpo é desprovido de pêlos, excepto o crânio. Os quatro membros são compridos comparados com o torso e desproporcionados entre o antebraço e o braço e entre a perna e a coxa. As patas dianteiras são dotadas de mãos com quatro dedos, sendo o polegar oponível; as patas traseiras terminam por um pé semelhante ao nosso, mas muito maior, com quatro dedos. A cabeça é pequena, do tamanho do punho fechado de uma criança de dez anos e o alto do crânio está revestido de cabelos. O focinho é curto e largo, com narinas de grande mobilidade. Apresenta dois grandes incisivos e dois caninos aguçados. De cada lado da cabeça surge uma orelha de forma ovóide (...) .

Às vezes, os registros são muito mais prosaicos: Charles Hoy Fort deixou um volumoso arquivo de jornais em que se podia ler, ainda em 1910, em Nova York, onde viveu toda sua vida:

No dia 2 de novembro de 1819, chuva vermelha sobre Blankenberghe, no dia 14 de novembro de 1902, chuva de lama na Tasmânia. Flocos de neve do tamanho de pratos em Nashville, a 24 de janeiro de 1891. Chuva de rãs em Birmingham a 30 de junho de 1892. Aerólitos, bolas de fogo. Pegadas de um animal fabuloso no Devonshire. Discos voadores. Marcas de ventosas sobre montanhas. Engenhos no céu. Caprichos de cometas. Desaparecimentos estranhos. Cataclismos inexplicáveis. Inscrições sobre meteoritos. Neve preta. Luas azuis. Sóis verdes. Aguaceiros de sangue.

Mais de 25 mil notas que a Ciência entendeu que devia por de lado:

Um iceberg voador cai em pedaços sobre Ruão no dia 5 de julho de 1853. Carcaças de viajantes celestes. Seres alados a uma altitude de 8000 metros sobre Palermo, a 30 de novembro de 1880. Rodas luminosas no mar. Chuvas de enxofre, de carne. Restos de gigantes na Escócia. Caixões de pequenos seres vindos de algures, nos rochedos de Edimburgo .


Tais registros são sistematicamente ignorados pelos historiadores, tidos como excentricidades pouco digeríveis, já que não fazem eco às narrativas consagradas e em grande medida contestam sua harmonia. Nesses casos, é impossível acometer-se do anacronismo, tão distantes estão de nossas normoses. Alias, é impossível acometer-se do quer que seja, exceto do estranhamento e das limitações de nossa percepção.

Não há pecado maior para o fazer do historiador, segundo todos os cânones, do que o anacronismo. Ser anacrônico é incorrer numa seara cujas implicações extrapolam, por infantilidade, as intenções esperadas desse exercício nobiliárquico que é o meter-se nas tramas da história. Não há impunidade quando o anacronismo acompanha esse desavisado viajante de velas ao vento. A historicidade do anacronismo é um indicativo de sua natureza política. Por meio desse artifício, impedidor (apenas como discurso ) das analogias, obriga-se o historiador a aparelhar-se de um ferramental cuja disposição e disponibilidade serão engessamentos metodológicos fundamentais, funcionando quase como uma crença, um apriorismo que faz da argumentação um jogo de cartas marcadas. A história ocidental, a civilização ocidental, o enraizamento do fluxo epocal é uma dessas garantias metodológicas em que a condenação do anacronismo deve se ancorar. Em algum momento aprisionamos o passado na coerência da narrativa. A analogia deve ser impedida, pois revela por demais o absurdo dessa narrativa histórica. Então o escravismo é de outra ordem, a riqueza é de outra natureza, a pobreza idem, o poder, a hierarquia, a dominação, o discurso, tudo, exatamente tudo é igual em sua densidade. O anacronismo, esse pecado mortal, revela quanto de atual têm nessa história da humanidade ocidental civilizada. Palavras como democracia, tirania, trabalho, tramam relações sociais tão próximas, tão semelhantes, que é necessário recorrer a uma estetização do cotidiano para conseguirmos notar a diferença. Assim como família, casamento, paternidade, etc, etc. Tenho essa mania compulsiva de destacar as páginas dos jornais cujos assuntos, por alguma razão parecem-me que merecem ser recolhidos, para um dia, quem sabe, serem compilados, discutidos, lidos ao menos. O resultado constrangedor disso tudo é um amontoado de velharias que aparentemente nunca serão revistas. Para não dizer que não utilizei nada disso, compilo dois registros desses que aparentemente nada tinham em comum. O primeiro diz respeito ao banquete de casamento. Apareceu no Estado de São Paulo, jornal relevante, numa sexta feira, 8 de outubro de 2004, p. D-11 e dava conta do luxo e da gula inerentes ao banquete de casamento. Começa assim o texto:

(...) muitas pessoas se espantam com a prodigalidade de algumas festas de casamento, em que pais milionários gastam fortunas oferecendo aos convidados das bodas dos filhos alimentos preciosos e bebidas raras. Na verdade, há pouco o que estranhar. O banquete nupcial sempre se prestou à exibição de riqueza e à afirmação social. A liberação da gula e os excessos etílicos constituem os ápices do ritual. Na idade média e na renascença, a cerimônia selava a aliança entre as casas reinantes ou principescas e permitia que a nobreza exibisse à plebe todo o seu poder e paixão pelo luxo.

Creio que está bom para o que me interessa. Destaco que “sempre se prestou à exibição de riqueza e afirmação social”. O texto seguinte foi publicado na Folha de São Paulo, domingo, dia 18 de setembro de 2005, pág. 3 do caderno Mais, e, diferentemente, foi elaborada por um atento crítico do modelo estabelecido. Robert Kurz chama atenção para a Ressaca do Fordismo. Diz ele no início do texto:

durante muito tempo pareciam bem definidas as fronteiras entre a miséria em massa e as relativas condições de bem estar coletivo. A linha demarcatória separava essencialmente o norte do sul do planeta. Essa constatação foi, no entanto, apenas um produto da história depois da segunda guerra.

Então, se compreendi bem, a forma como entendemos questões tão naturalizadas como as fronteiras entre pobres e ricos foi uma “constatação da história depois da segunda guerra”? Fico meditando se esses dois textos contemplam alguma conexão, salvação para todos que se encontram retalhados em meus arquivos pessoais. A história depois da idade média e da renascença, e a história depois da segunda guerra mundial. De um lado, o luxo e a naturalização do ritual do casamento, sempre presente nas relações sociais. De outro, a miséria contemplada pelo esgotamento de um modelo de relação, incapaz de proporcionar bem estar, já que seus princípios estão ancorados numa lógica atroz de desigualdade explícita, rancorosa, derradeira ofensa ao bem estar dos homens. O meio e o fim...em nenhum dos dois casos o início . Nos dois casos a mesma determinação: os homens carregam o fardo de sua humanidade. E sua humanidade é dominadora, descarada, ofensiva, iníqua em sua gênese.

Mas a discussão do anacronismo passa necessariamente pelos problemas da tradução. Hoje, não se questiona o fato de que possamos ler o grego clássico do século V antes de cristo no português do século XXI, dois mil e seiscentos anos de distância, variegada geografia do trajeto, infinitas mutações lingüísticas, transformações de toda ordem, sem nenhum problema.

Depois de percorrer um sinuoso trajeto, aporta na contemporaneidade o perdido manuscrito de sete ensaios de Arquimedes, o arquiteto e inventor da Grécia antiga, também conhecido como palimpsesto de Arquimedes.

Encravado sob o texto de um escriba bizantino provavelmente do século X e que, por sua vez, estava soterrado sob iluminuras e orações produzidas por um monge de Jerusalém, também provavelmente no ano de 1229, o conjunto era conhecido desde 1906, quando um pesquisador dinamarquês estudou a obra com lente de aumento.

Agora, com novas técnicas, os cientistas retiraram delicadamente as camadas superiores, examinando com raio X e digitalizando fotos multiespectrais, capturadas com ondas diferentes de infravermelho a ultravioleta.

O resultado, são 170 páginas arremessadas diretamente da Grécia de 200 anos antes de Cristo para o presente.

Inúmeros problemas podem ser apresentados a contestar essa versão: sem nenhuma assinatura, quem pode garantir que o texto não fora produzido no mesmo movimento das sobreposições do séculos X ao XIII? O grego da escritura é compatível com o grego do período da iluminura ou da Grécia de doze séculos antes? Compreendendo o preciosismo arquivista dos monges copistas, soterrariam mesmo um texto de doze séculos sob orações de literatura litúrgica? Afinal, o que um texto grego fazia em uma ordem monástica como lixo?

Em agosto de 1994, um dos mais importantes boletins científicos norte-americanos, o Statistical Science, órgão de divulgação do Instituto de Estatística Matemática, publicou em seu volume 9, nº 3 um artigo de três matemáticos israelenses (Eliyahu Rips, professor adjunto de Matemática na Hebrew University of Jerusalém, Dorm Witztum e Yoav Rosemberg do Jerusalém College of Technology) com o título Seqüências alfabéticas eqüidistantes no livro do Gênesis que causaria grande impacto nos meses seguintes.

Segundo os autores, as pesquisas foram encetadas sobre um trabalho anterior, descoberto pelo rabino Weissmandel que encontrara padrões no Pentateuco hebraico, os chamados cinco livros de Moisés, em que dispunha geometricamente o texto original e operava na busca de seqüências alfabéticas eqüidistantes, detectando letras que formavam palavras, sejam dispostas horizontalmente, verticalmente ou de modo inclinado, transversalmente ao texto original.

Eles exemplificam assim a metodologia:

A abordagem que adotamos nesta pesquisa pode ser ilustrada pelo seguinte exemplo. Suponhamos que temos um texto escrito em algum idioma estrangeiro que não compreendemos. Perguntam-nos se o texto é significativo (naquele idioma estrangeiro) ou insignificativo. Evidentemente é muito difícil decidirmos entre essas possibilidades, uma vez que não compreendemos aquele idioma. Suponhamos agora que estamos equipados com um dicionário muito parcial, que nos permite reconhecer uma pequena porção das palavras do texto: “martelo” aqui e “cadeira” acolá, e talvez “guarda-chuva” em outro lugar. Poderemos agora decidir entre as duas possibilidades? Ainda não. Mas suponhamos agora que, com a ajuda do dicionário parcial, podemos reconhecer no texto um par de palavras conceitualmente correlatas, como “martelo” e “bigorna”. Verificamos se há uma tendência para aparecerem no texto em “estreita proximidade”. Se o texto é insignificativo não esperamos ver tal tendência, uma vez que não há razão para que ela ocorra. A seguir, ampliamos nossa verificação; talvez identifiquemos alguns outros pares de palavras conceitualmente correlatas: como “cadeira” e “mesa” ou “chuva” e “guarda-chuva”. Temos assim uma amostra de tais pares, e verificamos a tendência de cada par para aparecer no texto em estreita proximidade. Se o texto é insignificativo, não há razão para esperarmos tal tendência. Contudo, uma forte tendência de tais pares para aparecerem em estreita proximidade indica que o texto talvez seja significativo. Notemos que mesmo em um texto absolutamente significativo não esperamos que, deterministicamente, todos esses pares mostrem tal tendência. Notemos também que ainda não decodificamos o idioma estrangeiro do texto; não reconhecemos sua sintaxe e não somos capazes de ler o texto. (Drosnin, 2005, anexo I)

Embora longa, tal citação confere algumas instigantes proposições para efeito de nosso trabalho:

Como já visto, o texto em questão foi o Pentateuco, tratado, digamos, geometricamente. Buscou-se palavras significativas dispostas eqüidistantes no interior do padrão geométrico. Importante frisar, que tal busca manteve um caráter randômico, ou seja, aleatório nas identificações, o que quer dizer que a uma palavra encetada no mainframe do computador programado para realizar a busca, a atenção estaria focada unicamente nas palavras eqüidistantes que acompanhavam o registro.

Note-se que o texto era o original, hebraico, cuja forma é, segundo os especialistas, imutável desde sua concepção, não alfabético, uma espécie de grafia rúnica cuja característica rabínica consiste em interpretação, diferentemente do texto bíblico cristão, fixado primeiramente em aramaico, depois em grego, depois em latim e depois nas línguas vernáculas a partir do século XV.

Segundo os editores, que testaram o experimento antes da publicação,

Nossos avaliadores ficaram perplexos; suas crenças anteriores os faziam pensar que seria impossível o Livro do Gênesis conter referências significativas a indivíduos dos tempos modernos e, no entanto, quando os autores realizaram análises e verificações adicionais, o efeito persistiu. (Drosnin, 2005, anexo I)

De posse dessas premissas, o jornalista americano Michael Drosnin resolveu testar a descoberta utilizando os mesmos programas com uma série de dados contemporâneos significativos.

Sua mais significativa inserção foi o nome de Yitzhak Rabin. O resultado foi um par de palavras cuja tradução foi “assassino que assassinará” e o ano judaico correspondente ao possível assassinato. Afirma Drosnin:

Em 1º de setembro de 1994, voei até Israel e encontrei-me em Jerusalém com um amigo íntimo do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, o poeta Chaim Guri. Dei-lhe uma carta que ele passou imediatamente ao primeiro-ministro. Eis o que dizia aquela carta: “Um matemático israelense descobriu um código oculto na Bíblia que parece revelar detalhes de acontecimentos que ocorreram milhares de anos após a Bíblia ter sido escrita. “A razão pela qual estou lhe dizendo isso é que, na única vez em que seu nome completo – Yitzhak Rabin – está codificado na Bíblia, as palavras ‘assassino que assassinará’ o cruzam. “Este fato não deve ser ignorado, pois os assassinatos de Anuar Sadat e de John e Robert Kennedy também estão codificados na Bíblia – no caso de Sadat, com o nome e sobrenome de seu matador, bem como a data e local do crime e como ele se deu. Penso que você corre perigo real; mas esse perigo pode ser evitado”. (Drosnin, 2005, p.13)

Efetivamente, em 4 de novembro de 1995 o primeiro-ministro israelense fora vítima de um atentado fatal contra sua vida por um judeu pertencente a grupos ultradireitistas israelenses.

Alguns especialistas em teoria dos jogos, campo da matemática ligado à física quântica, haviam descoberto um programa capaz de ler o futuro num texto escrito três mil anos antes de Cristo.

Esse é um problema relativo à tradução que implica numa dimensão ampliada, já que envolve conexões surpreendentes para os limites desse ensaio. Contudo podemos nos ater a minudências mais ordinárias e bem menos extravagantes.

Em 1961, o Clube do Livro lançou de François Rabelais, O gigante gargântua, obra picante escrita em 1534 como severa crítica de costumes a uma sociedade carregada da fleuma hipócrita que se naturalizaria nos anos seguintes como a ética burguesa.

Segundo a introdução de Domingos Carvalho da Silva,

A presente edição do ‘Clube do Livro’ é uma tradução dessa obra, expurgada dos capítulos e das passagens e expressões que o tradutor houve por bem julgar impublicáveis ou inconvenientes. (Rabelais, 1961, p.11)

E mais adiante conclui:

A tradução que se segue foi, como dissemos, escoimada pelo tradutor, certamente em atenção às tendências do público assinante das edições do ‘Clube do Livro’. As passagens mais cruas e mais irreverentes foram suprimidas e, em consequência o colorido – que hoje se poderia chamar de ‘engagé’ – da novela, esmaeceu. Permanece, porém, na figura do gigante Gargântua, e na de Grandgousier, Gargamelle e demais personagens, boa parte da expressão de um livro que não sobreviveria ao tempo se não fosse, também, como obra literária, uma alta realização do espírito humano. (idem ibdem)

O gosto de uma época pode definir o que deve ser preservado e o que deve ser esquecido. É certo que o texto de Rabelais ainda pode ser recuperado integralmente, mas poderia ter sofrido outras intervenções em seu próprio tempo? Antes de fixar-se para a posteridade? Nas diversas traduções epocais, dessas que ocorrem na transformação da língua em que foi escrito? Cada tempo tem sua própria moralidade? Melhor, cada grupamento humano tem seu próprio ethos? O trânsito trans-epocal, ou diacrônico, e o trânsito trans-cultural, ou sincrônico, interferem ambos os movimentos nos riscados de um texto?

Tal pode ser surpreendido com a trajetória do texto de Etienne de La Boétie, o Discurso da Servidão Voluntária.

O manuscrito original fora confiado por La Boétie, antes de sua morte, a Montaigne e, talvez por razões políticas, jamais foi localizado, sendo que duas cópias, aparentemente transcritas do original, foram enviadas a dois amigos de Montaigne, De Mesmes e Dupuy, encontrados e editados somente no século XIX, em 1853.

Outros textos foram publicados em 1574, 1577 e 1578, que “parecem” ter sido adulteradas e que só puderam ser cotejadas com a publicação do texto de De Mesmes, já no século XIX, confirmando-se a suspeita.

Diz Laymert Garcia dos Santos, tradutor do texto de referência:

(...) para traduzi-lo é preciso demorar-se no discurso, no percurso, morar no texto, tentar captar suas pulsações. O que exige um trabalho, no sentido mais nobre da palavra, e o que torna o trabalho de tradução uma empresa sem garantia alguma. Como ter certeza de que se ouviu bem? Como impedir que a tradução não seja, em algum nível, uma traição? (La Boetie, 1982, p. 8)

O trecho diz respeito, primeiramente, a atuação do próprio tradutor, ser comprometido com seu tempo, atarraxado aos parâmetros de suas experiências culturais e epocais, incerto, portanto, de seu mergulho na espasmódica tessitura que tem em mãos. Mas o texto utilizado por Laymert dos Santos é o francês, estabelecido a partir do século XIX.

O texto está escrito em francês arcaico. Só isso já constitui problema – quatro séculos separam a redação da tradução: outra a língua, outro o tempo, outro o lugar, outro o espírito. As dúvidas se multiplicam quando ficamos sabendo que, além do mais, o discurso de La Boétie, sua voz, é singular, dentre os discursos do século: outra, portanto, é a sua lógica, a sua linguagem e, também, a sua escansão. (idem, ibdem, p.8 e 9)

Portanto, quatro séculos significa outro mundo, mesmo em se considerando a língua em que foi escrito. Nesses quatro séculos a língua francesa se modificou substancialmente. Um leitor francês do século XIX não entenderia quase nada do texto escrito no século XVI:

Tais questões ficaram evidenciadas antes mesmo que a tradução fosse iniciada. A simples comparação do manuscrito De Mesmes com a transcrição na mesma língua, feita por Charles Teste, já testemunhava a traição. Traição grosseira, que manifesta a dupla incapacidade do século XIX, e que é uma incapacidade histórica, por um lado, incapacidade de compreender o estatuto do destinatário do discurso, demonstrado pela insistência de Charles Teste em querer “simplificá-lo” e “explicá-lo”; por outro, a impossibilidade de ler, de ouvir, o que o manuscrito De Mesmes está dizendo. (...) o contraste entre o texto e sua transcrição é gritante. Não se trata nem mesmo de uma transcrição: Charles Teste, soberana e paternalmente, corrige o texto desse “bom Etienne”, adaptando-o às “verdades” do século XIX. Vale dizer, pervertendo-o. (idem, ibdem, p.9)

Embora empregue os termos “traição” e “pervertendo-o”, mais de trezentos anos distanciam estas duas operações: “outra a língua, outro o tempo, outro o lugar, outro o espírito”. Não devemos ser por demais severos com Charles Teste. Este é o imperativo da tradução, adaptar, modificar, tornar familiar ao novo ambiente.

Assim é a voz que procura dizer o “que não encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega-se ter feito, e a língua se recusa nomear” (idem, ibdem, p. 10). A voz do tradutor!

Contudo, às vezes, a voz pronuncia, na tradução, seus interesses, muito além de suas idiossincrasias. Este parece ser o caso de algumas traduções da Bíblia quando de sua passagem para as línguas vernáculas.

Hill (2003) descreve o cenário das disputas revolucionárias da Inglaterra do século XVII, em que as questões religiosas assumiam uma posição de destaque.

O que estava em disputa, afinal, era o poder real ou o poder do parlamento. Nesse cenário, a Bíblia foi um artifício de grande poder de influência:

A Bíblia torna-se, então, o centro das artes, das ciências e da literatura. Em 1590, o radical separatista Robert Browne talvez tenha dado ênfase exagerada quando disse a um parente, Lord Burghley, que “a palavra de Deus, corretamente expressa, dispõe todas as normas gerais e necessárias das artes e do aprendizado” (Hill, 2003, p.51) (grifo meu).

Exagero ou não, o trecho aponta a questão principal: “corretamente expressa”, há uma forma correta de expressar a palavra de Deus. E há uma forma incorreta, portanto. Esse voluntarismo marcará as operações de tradução da Bíblia para o inglês do século XVII.

Duas traduções do latim arrogam para si a “verdade” da Palavra: de um lado, a chamada Bíblia Inglesa e de outro a Bíblia de Genebra.

O texto que viera originariamente do aramaico, fora traduzido para o grego, percorrera os caminhos do deserto em traduções árabes, fora vertido para a flor do Lácio e agora aparecia nas questões políticas do século XVII como uma versão inglesa ainda carregava a força bruta da Palavra de Deus.

Afirma Hill (2003, p.89):

Desde o começo, a Bíblia havia sido uma criação política. Os cristãos haviam rearrumado as Escrituras hebraicas no segundo século depois de Cristo para produzir o Antigo Testamento. Os textos agnósticos foram excluídos do Novo Testamento e a Epístola de São João e o Apocalipse só foram admitidos tardiamente. As traduções do latim para as línguas correntes foram – e como tal são reconhecidas – construções políticas. A versão alemã de Lutero foi dirigida contras os sectários radicais e também contra os papistas.

Desaparecem os termos originais, arremessados pelas intenções próprias do tempo e transmutados em outras “revelações”, palavra atualizada e ressignificada. A exegese é uma mutação que legitima a doutrina, vista com olhos sempre novos, caprichosamente instalados na temporalidade zerada do presente, equação que sempre, sempre será igual ao hoje em qualquer tempo.

O papel desempenhado pelo texto bíblico nesse período devia-se ao fato de que a Igreja e o Estado eram uma unidade, “a religião tornou-se política e a Bíblia se transformou em um texto útil para ambas as esferas” (p.83).

De um lado, “os poderes que foram entregues por Deus (Romanos 12.1)” confirmavam o papel divino desempenhado pelo rei. Como tão bem aponta Hill (p.85):

A Bíblia tornou-se, portanto, um campo de batalha. Para aqueles que a conhecia bem, uma seleção equilibrada das passagens podia transformar-se em respostas desejáveis para a maioria dos problemas. Nela podiam ser encontradas defesas para o status quo (...) mas também podiam ser lidas severas críticas aos reis, defesas aos direitos dos pobres e ataques à usura.

Assim, a Bíblia Inglesa pôs-se na defesa incontinenti dos reis, enquanto a Bíblia de Genebra colocara-se na justificativa do parlamento como fórum indicado por Deus para a manifestação da condução dos povos. Em sua última tentativa de evitar a restauração monárquica de 1660, escreve Milton:

Portanto, nada tenho a chorar, mas a exclamar, junto com o profeta, Oh, Terra, Terra, Terra, o próprio solo que Deus entregou a Conias e suas sementes para sempre.

E Hill (p.87):

Seu significado seria claro para todos aqueles que conhecessem suas Bíblias e as anotações daquela de Genebra. “Conias” é um apelido para Jeconias, um rei idólatra de Judá que (segundo as anotações da Bíblia de Genebra) “foi justamente despojado de seu reino” quando exilado na Babilônia. O Conias a que Milton se refere é Carlos I, “Um ídolo já quebrado e desprezado”. “Ele e suas sementes foram enviados para uma terra que não conheciam”. “Não pode haver homem algum que, brotando desta semente, possa prosperar e mereça sentar-se no trono de Davi”. Milton deve ter se lembrado das palavras de seu ministro paroquial Richard Stock, quando este declarou que “o exílio e o desterro (...) são sinais e provas (...) da raiva e ira de Deus”.

Hill é cauteloso quando coloca entre parênteses “segundo as anotações da Bíblia de Genebra”, pois a sugestão refere-se às inclinações políticas do tradutor, senão seria relativamente redundante a tradução de duas bíblias para o inglês do período.

Desses exemplos elencados até aqui, podemos nos indagar qual a natureza dessas leituras históricas? Todas são anacrônicas, amarradas aos propósitos de suas temporalidades, todas, enfim, presas irremediavelmente a seus respectivos presentes. Mas estarão equivocadas tais leituras? Serão “traidoras”, serão “políticas” ao perverterem os textos originais? Podemos, afinal, nos investir dos trajes de outros tempos? Podemos capturar o espírito de uma época e nos despojarmos de nossos comprometimentos?

Para que possamos dar respostas mais adequadas a tais questões precisamos historicizar o conceito do anacronismo. Desvendar sua gênese é uma possibilidade de entender as razões de seu aparecimento como um arrazoado de pecados e de tabus a que os historiadores devem se afastar .

Fustel de Coulanges, Gadamer, Koselleck, Hartog, Collingwood, dentre outros historiadores podem nos fornecer as pistas de um caminho.

O anacronismo pode ser a chave para que possamos compreender as tramas e os ardis que a história, quase como um veículo autônomo (embora com certeza não!), e seus agentes, por vezes conscientes e outras tantas enredados pelos anelos sutis da ideologia, estabeleceu dando um fim ao começo.

Se hoje pensamos em historicidades, em fenômenos que podem ser “medidos” a partir de seu aparecimento, seu desenrolar e desaparecimento, temos a obrigação de surpreender o estatuto do anacronismo, destrancando a porta de um novo passado, assumidamente atrelado ao presente e a nossas questões mais relevantes: a dominação, a hierarquia, a natureza do homem, a dualidade homem-natureza , a naturalização de tantos fenômenos que já não parecemos mais historiadores, mas biólogos darwinistas que reduzem o tempo a uma fórmula positiva. Os historiadores se apresentam como os seres mais conservadores desta sociedade. Um atavismo irresistível os prende ao terrível século XIX, uma âncora demiúrgica que é sua maldição apriorística. Eis uma hipótese que podemos começar a enfrentar com a discussão do anacronismo. Uma segunda hipótese plausível é que entender o anacronismo como um tabu historiador implica, em última instância, entender o passado como algo fechado sobre si mesmo, sobre o já feito, pois se devemos nos despir de nossa época tanto quanto possível e nos investir dos vestígios de outra, significa que devemos caminhar sobre o já caminhado, abdicando da aventura do desconhecido. Como o século XIX praticamente produziu tudo sobre a história que o antecedeu, obliterou qualquer possibilidade de abrir trilhas novas. Benjamin escreve n’As Passagens:

O verdadeiro método de tornar as coisas presentes é representá-las em nosso espaço (e não nos representar no espaço delas). (Assim procede o colecionador e também a anedota.) As coisas, assim representadas, não admitem uma construção mediadora a partir de “grandes contextos”. Também a contemplação de grandes coisas do passado – a catedral de Chartres, o templo de Phaestum – (caso ela seja bem-sucedida) consiste, na verdade, em acolhê-las em nosso espaço. Não somos nós que nos transportamos para dentro delas, elas é que adentram a nossa vida .

O historiador, que ainda não é nem colecionador nem tampouco um piadista, um sastre como Camilo Cienfuegos o foi, carregado com as cicatrizes do espírito do tempo, mistura passado e futuro, presente e circularidade, erradicando a seta da cronologia, ou melhor dizendo, torcendo-a num torvelinho de direções que Einstein em 1955 assim traduzia: “a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão, embora persistente”.

Para que esse estudo abranja os pontos de interesse que devem ser focados, dividirei o texto em três partes. A primeira, Apontamentos Sobre a Tradução Iluminista do Mito da Caverna de Platão, de âmbito mais técnico, trata dos comprometimentos da tradução, mais especificamente da convergência de dois fenômenos de ruptura: a invenção da prensa de tipos móveis de Guttenberg e a consolidação das línguas vernáculas modernas européias. A segunda, O Demiurgico Século XIX, trata do caráter inaugural do século XIX sob dois aspectos ideológicos: o aparecimento de três correntes políticas: as utopias românticas [socialismo, comunismo, anarquismo], como alternativa ao liberalismo [capitalismo] que se encontra em Marx, o positivismo e o racismo [darwinismo] e de três instituições: família nuclear burguesa, escola laica para todos (que se encontra em Freud) e trabalho instituído (e não mais instituinte ). A terceira, Collinwood e a Invenção do Anacronismo, envolve os problemas políticos que confinaram o século XIX e o anacronismo como ferramentas de consolidação de verdades, e mais especificamente dos historiadores que criaram tal ferramenta, funcionários que legitimaram o anacronismo como um território proibido para o futuro. Suas prescrições naturalizaram muitos tabus.

Acho que foi Satori Uso quem disse uma vez: A metáfora é uma máquina de pensar.


Manual de Contra-História na Antimodernidade
Dominação, uma invenção moderna: historicidades e limites Anacronismo Apontamentos sobre a tradução iluminista do mito da caverna de Platão
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