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O anarquismo, desde seu surgimento até hoje, nunca deixou de ser importante em sua crítica ao capitalismo e ao Estado. No entanto, cabe discutir por que, a partir da década de 1930, o anarquismo brasileiro deixa de ter a visibilidade social que vinha tendo até então. Ao que nos parece, o anarquismo não desaparece como proposta ideológica, contundente e consistente, mas perde o vetor social, que naquele momento era representado pelo sindicalismo, conforme comenta o historiador Alexandre Samis:

“Foi, sem sombra de dúvidas, o sindicalismo revolucionário o responsável pelo primeiro vetor social conseguido pelos anarquistas nos grandes centros brasileiros. Como queria Malatesta, os anarquistas deveriam entrar em todos os campos que suscitassem as contradições do capitalismo, e lá fazer com que funcionassem da forma ‘mais libertária possível’. No meio sindical a orientação não era diferente (1)

Alguns fatores, tais como o atrelamento dos sindicatos ao Estado, a repressão e a ofensiva bolchevique contribuiriam para essa perda do vetor social, que era constituído, nesta época, pelo sindicalismo. A perda do vetor social ocasiona a tal perda de visibilidade do anarquismo no Brasil. Com isso, os anarquistas vão se abrigar nas ligas anticlericais, nos centros de cultura, ateneus, escolas, coletivos editoriais e de dramaturgia etc. que eram, e são, propostas interessantes, quando ligadas a um movimento social real, mas que sozinhas não são iniciativas capazes de realizar a propaganda necessária, já que a maior e mais efetiva propaganda, acontece quando ela está respaldada por uma prática social concreta. Samis continua sua reflexão sobre o assunto, argumentando que: “a crise do sindicalismo revolucionário tiraria dos anarquistas seu vetor social; sem espaços para inserção, [...] os libertários passam a se organizar em grupos de cultura e preservação da memória.” (2) E já havia sido constatado, dentro e fora do Brasil, que o vetor social - ou seja, uma presença dos anarquistas nos movimentos populares e na luta de classes - é fundamental para um anarquismo que pretenda apontar para a constituição de uma nova sociedade. Um exemplo das reflexões em torno deste fenômeno é encontrado em José Oiticica que, ainda na década de 1920, alertava para esse problema, colocado e discutido amplamente pelos anarquistas no início do século, no Congresso Anarquista de Amsterdã, em 1907. Oiticica defende a posição propugnada por Malatesta no Congresso, em oposição à de Monatte; para Malatesta, o sindicalismo não “bastaria a si mesmo”, como defendia Monatte; o sindicalismo seria um ótimo campo para a difusão do anarquismo, um meio, um vetor social que, em bom funcionamento, conduziria ao fim necessário, o que, segundo ele, seria a anarquia (3).

Ainda em 1923, no Brasil, Oiticica alerta para a falta de trabalho ideológico e a formação de grupos anarquistas específicos, para trabalho dentro dos sindicatos, que seriam capazes de sustentar sua prática revolucionária. Muitos anarquistas haviam entendido que a única atividade do militante anarquista seria a atuação sindical e, se isso reforçava o trabalho imediato do dia-a-dia por um lado, por outro enfraquecia a doutrina e as práticas políticas ideológicas. Oiticica criticava os anarquistas que, naquele momento, davam muita atenção à ação sindical e pouca à atividade ideológica.

Refletindo sobre a perda do vetor social do anarquismo e a posição de Oiticica, Samis afirma que “uma vez perdido o vetor social, e sem organizações específicas capazes de sustentar um embate ideológico de maior duração, não foi possível aos anarquistas encontrarem, de imediato, outro espaço de inserção (4).” A dedicação praticamente exclusiva ao sindicalismo confundia o meio com o fim, o vetor social com a ideologia. Em sua crítica, Oiticica tinha razão, pois, uma vez que perdem esse vetor, os anarquistas não mais terão a capacidade de escolher um novo, já que não estavam organizados ideologicamente.

Essa argumentação de Oiticica, que tem por base diferenciar os níveis de atuação social e político, havia sido desenvolvida no século XIX por Bakunin. Ele definiu que o ambiente de formação e de união em torno da ideologia, ou seja, o grupo anarquista específico, seria o nível político, representado na época pela Aliança da Democracia Socialista. O nível social, ou o movimento social e popular, seriam a movimentação e agitação operária de massa que aconteciam, na época, no seio da Primeira Internacional, ou AIT. Em cima desta mesma análise, Oiticica, assim como Bakunin, buscou defender uma forma de atuação em que o vetor social não suprimisse a idéia do grupo político, ideologicamente anarquista. Foi, dentre outros fatores, a confusão entre os níveis de atuação que terminou por condenar o anarquismo brasileiro à perda de seu único vetor social da época, e que nunca mais seria retomado nas mesmas proporções.

  • Felipe Corrêa é militante da Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ)

1) Samis, Alexandre. "Pavilhão Negro sobre Pátria Oliva: sindicalismo e anarquismo no Brasil”. In: História do Movimento Operário Revolucionário. São Paulo: Imaginário, 2004, p. 179.

2) Ibidem, p. 181.

3) Para saber mais sobre este assunto, ver os textos originais que trazem esta discussão sobre a condição do sindicalismo abordada no Congresso de Amsterdã em Woodcock, George. Os Grandes Escritos Anarquistas. Porto Alegre: LPM, 1998, pp. 201-212. Sobre a posição de Oiticica, ver Samis, Alexandre. “Anarquismo, ‘bolchevismo’ e a crise do sindicalismo revolucionário”. Outras referências para o tema: Neno Vasco. Concepção Anarquista do Sindicalismo. Lisboa: Afrontamento, 1984. Samis, Alexandre. “‘Minha Pátria é o Mundo Inteiro’: Neno Vasco, o anarquismo e as estratégias sindicais nas primeiras décadas do século XX” (tese de doutoramento, UFF, 2006). Corrêa, Felipe. Reforma e Revolução. São Paulo: Faísca, 2006.

4) Samis, Alexandre. “Anarquismo, ‘bolchevismo’ e a crise do sindicalismo revolucionário”. (Ainda não publicado).

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